São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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O dragão enfrenta o santo

LOURDES SOLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há situações na vida de um país em que a incerteza política se configura como uma situação de luta entre dois princípios: a escolha entre os rumos possíveis não admite ambiguidades. Prestam-se, por isso, a uma leitura do tipo "Santo Guerreiro x Dragão da Maldade", se calhar pelos dois campos –e à vigorosa exclusão de um terceiro.
A "Operação Mãos Limpas" na Itália é o exemplo mais acabado desse estado de coisas no mundo pós-Guerra Fria. Apesar de exigirem definições claras, firmeza e abnegação pessoal por parte dos principais protagonistas (incluídos aí os "mafiosi"), e não obstante os altos riscos envolvidos em qualquer tipo de intervenção sobre elas, situações desse tipo têm a virtude de serem moral e analiticamente confortáveis.
São relativamente simples de interpretar e julgar. Ou se está ou não se está contra o crime organizado, a apropriação privada de recursos públicos, o narcotráfico, a erosão da autoridade do Estado como poder público. Estas não são, porém, razões suficientes para eximir o cientista social de dar conta da complexidade desse tipo de conjuntura –e de aprender com ela.
Pode-se analisar o impacto regressivo que o destape iniciado pela "Operação Mãos Limpas" teve sobre o sistema político italiano, sobre a deslegitimação e eventual desestruturação do quadro partidário. Afinal, Berlusconi e sua coalizão eleitoral, que inclui políticos assumidamente fascistas, têm a ver em parte com o desencanto do eleitorado diante da exposição sistemática dos mecanismos de corrupção que comprometiam partidos à direita e à esquerda do espectro ideológico.
Esse resultado imprevisto é perverso porque ameaça não só a democracia italiana, mas também a continuidade do processo de unificação econômica (e não só política) da Europa Ocidental. É que a organização do sistema de cooperação econômica, assim como a integração gradativa dos países à OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), desde sua origem (Tratado de Roma) está vinculada a condicionalidades políticas, formais e substantivas: instituições democráticas, um mínimo de bem-estar social, compromisso dos governos nacionais de manter salários mínimos elevados.
Os efeitos domésticos e internacionais da "Operação Mãos Limpas" não são automaticamente deriváveis da iniciativa dos cinco ou seis juízes italianos em aliança com empresários cuja resistência, de resto, foi decisiva para a montagem do arsenal de provas legais de que se necessitava para romper o pacto de silêncio e mobilizar a opinião pública.
Esses desdobramentos tornam mais complexos a interpretação –e o julgamento– de uma conjuntura inicial que parecia simples. Obrigam o analista a fazer um balanço crítico das contradições, dos dilemas –e também das oportunidades– criados pelo fato novo; obrigam-no também a uma boa dose de flexibilidade e de coragem moral para rever seus mapas ideológicos, se necessário.
As mudanças no contexto internacional em fins da década de 1980 e a forma pela qual afetaram as oportunidades para uma intervenção do tipo "Operação Mãos Limpas" oferecem um bom exemplo de como fatos novos podem afetar esquemas conceituais e identidades políticas.
Enquanto o princípio da Guerra Fria ordenou as relações entre os partidos de esquerda, de centro e de direita, cada um deles parecia ter razões de sobra para acobertar o envolvimento de seus quadros e de seus aliados com as redes semiclandestinas que privatizavam o Estado e as empresas públicas italianos. Isto significaria facilitar a ofensiva do adversário também em escala internacional.
Um dos efeitos domésticos não antecipados da queda do Muro de Berlim consistiu, justamente, em abrir espaço para maior circulação de verdades nos meios políticos italianos, ao liberar de falsas lealdades os quadros políticos mais críticos do status quo, que estavam distribuídos entre vários partidos.
É a partir desse contexto que se torna inteligível a montagem de uma ampla coalizão social entre os setores favoráveis à mudança e, em particular, o caráter transpartidário da coalizão política que serviu de apoio àquela iniciativa.
O artigo de José Luís Fiori publicado no Mais! de 3 de julho (págs. 6 e 7), a propósito do lançamento do Plano Real, suscita, de imediato, a pergunta: será que o tipo de indeterminação que caracteriza a conjuntura econômica e política que vivemos se presta a uma leitura do tipo "Santo Guerreiro x Dragão da Maldade"?
O título –"Os Moedeiros Falsos"–, o conteúdo dos argumentos e a forma de apresentação induzem o leitor a acreditar que sim. A "chamada" destaca o ponto central das críticas ao Plano e permite identificar quem são uns e outros: "O real não foi criado para eleger FHC, FHC é que foi concebido para viabilizar no Brasil as teses do Consenso de Washington".
Algumas das críticas são corriqueiras entre alguns intelectuais ligados a Quércia, Lula e Brizola. Ou seja: a idéia de que as diretrizes econômicas do Plano são as mesmas do receituário neoliberal; e a convicção de que seu impacto antiinflacionário poderá ser positivo mas de curta duração, do que deduzem (assimilando a crítica de Delfim aos cruzados do PMDB) que é um "engodo eleitoral".
O que distingue a crítica de Fiori é o fato de introduzir a dimensão política em termos muito mais radicais. Não se limita, apenas, à imputação de uma lógica estritamente eleitoral e portanto a cálculos imediatistas de curto prazo. Oferece um conjunto de argumentos para demonstrar –de forma dedutiva– que o Plano é parte integrante de um projeto maior, arquitetado fora do país e que suas diretrizes correspondem a um cálculo estratégico das instituições que representam o Consenso de Washington (CW).
Os economistas seus autores, a candidatura de Fernando Henrique Cardoso à presidência seriam instrumentais para garantir a continuidade das políticas neoliberais e, acima de tudo, para articular a remontagem da coalizão social de direita que legitimou o regime autoritário.
Admitamos que estas são hipóteses e como tal devem ser discutidas. Tendo em mente, é claro, para o que der e vier, que as nossas são ciências de observação, onde o método lógico-dedutivo ocupa um lugar importante, mas certamente não é o lugar de honra.
À luz dessa exigência, cabe discutir três aspectos da interpretação de Fiori. Em primeiro lugar, explicitar a diferença entre os pressupostos teóricos subjacentes ao diagnóstico da crise dos anos 80 pelos técnicos do CW e a dos neo-estruturalistas que avançaram a teoria inercial da inflação e/ou da crise fiscal do Estado, da qual deriva a proposta de estabilização –e de reforma do Estado– associada ao Plano Real.
Em segundo lugar, a dimensão política do que Fiori julga ser o projeto hegemônico de Washington. Em terceiro lugar, sua postura frente a uma das condições de governabilidade democrática, ou seja, a montagem de uma coalizão política que garanta maioria governativa.

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O receituário do Consenso de Washington é neoliberal por várias ordens de razões. De partida, porque confere ao mercado dois atributos. Primeiro, o de ser o princípio que ordena as relações sociais, o que é correto (tendencialmente) para as sociedades de mercado, como são as capitalistas.
Segundo, o de agente coordenador privilegiado da economia, por contraposição ao Estado, uma função erigida, automática e dedutivamente, em condição de desenvolvimento econômico e político.
Trata-se de um mix entre análise descritiva e um roteiro de mudança –para as economias e sociedades que "ainda não chegaram lá" onde estão aquelas apresentadas como paradigma, os EUA e os países da Europa Ocidental.
Em segundo lugar, interessa destacar o diagnóstico que o CW fez da crise latino-americana na década de 1980: ela é atribuída a fatores domésticos dos quais o mais importante teria sido o padrão de desenvolvimento centrado no Estado, fundamentalmente autárquico e protecionista, porque orientado prioritariamente para o mercado interno, e baseado na industrialização por substituição de importações.

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