São Paulo, segunda-feira, 25 de julho de 1994
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Aldous Huxley era um sábio à moda antiga

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando veio ao Brasil em 1958 para fazer conferência, a convite do Itamaraty, Aldous Huxley já era, como Sartre, conhecido como uma espécie de sábio à moda antiga. Era um homem de vastíssima cultura não-especializada numa época de "scholars" que sabem absolutamente tudo sobre quase nada.
Nos romances e contos, na poesia rara mas elegante, nos insaios de uma abrangência quase vertiginosa, Huxley já gozava de um prestígio mundial que acabou consolidado quando ele se embrenhou por um terreno –o da religião– que a cultura pós-moderna considera positivamente "out".
Além de mergulhar no tesouro das religiões mundiais, ele teve ainda a ousadia de inventar, para quem quisesse chegar em sua companhia ao tesouro, uma gazua: a das drogas, da mescalina, do LDS. Podemos chegar à vida eterna tibetana transformados em pura energia –dizia-nos ele– desde que na hora da morte não recuemos, não tenhamos medo da dissolução de nossa própria personalidade no vértice.
Se recuarmos, reencarnamos de novo, entramos outra vez na rotina de nascer, viver, fazer asneiras e morrer. Todos nós, pregava Huxley, podemos nos transformar em pura energia divina. Estamos esperando o quê?
Acresce que esse vidente, esse guru não andava de túnica, cabelos compridos, olhos ardentes de fé. Era altíssimo, magérrimo, fastidiosamente civilizado e quase cego. Vinha de uma família que poderia ser classificada como a mais importante, do ponto de vista cultural, da Inglaterra moderna.
A gente tropeça em Huxleys em qualquer moderna história das idéias, a partir do biólogo e pensador que foi Thomas Huxley, avô de Aldous e Julian, grande amigo e esteio de Darwin. E, mais do que em qualquer outro terreno, o clã Huxley foi o grupo humano que mais se esforçou por habituar o homem ocidental a viver sem aquele Deus meio folclórico, judaico-cristão, que Darwin destruiu com "A Origem das Espécies".
O velho Thomas inventou, para se definir a sí mesmo, uma palavra, "agnostico" que entrou no vocabulário culto de todos os idiomas. Agnóstico é o homem que abre mão da esperança de chegar ao conhecimento das causas primeiras, de Deus. Não pratica o ateísmo. Nem reza. Aguarda.
O outro neto de Thomas, Julian Huxley, entre outros trabalhos de biologia e de filosofia, escreveu, na trilha do avô, "Religion without Revelation", grave a agnóstico. Aldous foi o gnóstico da família. Podemos chegar a Deus –um Deus impessoal, oriental– com a pura força do pensamento. E uma prise de LDS.
Huxley no RioQue dizer sobre a visita que fez Huxley ao Brasil em 1958? Veio acompanhado da mulher, a italiana Laura Archera, e teve como competente cicerone entre nós, a serviço do Itamaraty, Daphne Lynch, de boa cepa anglocarioca, neta do empresário Sir Henry Lynch.
Huxley abordou, como conferencista, os problemas básicos do mundo moderno, como a super-população e a ameaça nuclear, que então pesava sobre nós. Pode-se dizer que seu livro de ensaios intitulado "Brave New World Revisited", publicado em 1960, é um desdobramento das idéias que expôs aqui.
Tive no Itamaraty um primeiro contato com ele. De livros brasileiros só conhecia "Casa Grande e Senzala". Em relação ao idioma português andava intrigado com a palavra "rapaz". Como passou a ter o significado de "moço" quando vem do latim "rapace" que em inglês deu "rapacious", voraz, mesquinho, dado a furtos sorrateiros? Respondi, meio sem jeito (eu queria conversar sobre ácido lisérgico) que em português rapaz e rapace são adjetivos como "rapacious".
Como chegáramos daí ao substantivo rapaz, confessei que não sabia. Sugeri a Huxley que perguntasse a Gilberto Freyre, com quem ele se avistaria no Recife. Os dois se encontraram. Só não sei se o rapaz surgiu na conversa.
Tive, a seguir, um contato maior com o ilustre visitante quando soube por Daphne Lynch que ele gostaria muito de conhecer os índios selvagens do Brasil. Graças aos bons ofícios do brigadeiro Francisco Teixeira, chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica, um avião da FAB que fazia a rota do Xingu foi designado para nos levar ao Parque Indígena, que então florescia nas mãos de Orlando e Cláudio Villas Boas.
A nossa expedição de um dia ao posto do Tuatuari, sede do Parque, juntaram-se, do lado brasileiro, o embaixador Mario Vieira de Melo, e do lado anglo-saxão a postisa Elizabeth Bishop, que já fizera amizade com os visitantes.
Por defeito na instalação radiofônica do Parque, não foi possível avisar aos Villas Boas que estávamos indo lá. E a surpresa valeu. Emergindo da casa principal do Posto, Cláudio, a quem comuniquei a visita, acercou-se do grupo, olhou para aquele inglês quase tão alto quanto o buriti mais próximo, e perguntou, incrédulo: "Você é mesmo o Huxley? O Huxley de 'Contraponto'?"
Huxley estendeu a mão a Cláudio, abriu o rosto num sorriso largo. E, além de Cláudio, ele gostou mesmo foi das borboletinhas brancas que surgem em bandos enormes à beira do rio, no barro branco e úmido, a tabatinga. Ele se pôs de cócoras, entre mil borboletinhas miudinhas, e queria saber o que faziam ali, em tamanho frenesí. Ninguém sabia. Os índios pelados, Huxley os olhou com certa incuriosidade, talvez por palidez, para deixá-los à vontade.
Quem fez o maior sucesso entre os calapalo e uialapiti foi Laura Archera, pela simples razão de que trazia e usava o tempo todo uma câmara Polaroid, ainda rara naquele tempo. Índio, como se sabe, adora a própria imagem, e os do Xingu nunca tinham visto ninguém bater uma chapa e a seguir exibir o retrato pronto.
Cercaram a loura Laura como se fosse uma feiticeira, à medida que ela arrancava da caixa preta o papel mágico que de repente captava a imagem das pessoas vivas.
Não me lembro quem do grupo, com uma máquina comum, tirou uma foto de Laura quando puxava da Polaroid uma chapa a tinha o gesto acompanhado por um fascinado índio que se debruçava sobre a fotógrafa enquanto segurava o pênis com a mão direita. Quando essa foto foi revelada no Rio, Huxley achou nela a maior graça e declarou: "Vou fazer desta foto meu cartão de Natal".
Ainda durante a viagem ao Rio Huxley foi levado a uma macumba pelos escritores Zora Seljan e Antonio Olinto. De Huxley ouvi depois que tinha ficado fascinado com a macumba: "Pensei nos ritos religiosos gregos de antes do período clássico", me disse ele.
E desde então, com as palavras do sábio ressoando no ouvido, estou esperando que o Brasil inicie seu período clássico.

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