São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Quem tem medo do neoliberalismo? - 2

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No artigo do último domingo, argumentei que a polêmica de surdos entre petistas e tucanos revela uma espantosa desinformação sobre o pensamento neoliberal. Da falência do ensino à eugenia na China, o neoliberalismo é a raiz de todos os males. A condenação não resulta do estudo –é "parti pris" do juízo. No lugar da crítica consequente, o que temos são acusações vagas, descabidas e peremptórias –uma espécie de cangaço ideológico.
Não faz muito tempo, as "contradições do capitalismo" e o "imperialismo" resolviam qualquer parada. Contra as "leis inexoráveis da história", quem ousaria se opor? Como dizia Simone de Beauvoir, do alto das certezas da época: "A verdade é una; o erro, múltiplo. Não é por acaso que a direita professa o pluralismo". Agora é a vez do "neoliberalismo" e do "Consenso de Washington". As fantasias persecutórias passam, os cacoetes intelectuais permanecem.
Entre as acusações que são feitas ao neoliberalismo no Brasil, uma das mais frequentes é a de que ele "é contrário a qualquer tipo de intervenção do Estado, inclusive no campo social". O que poucos se dão conta, contudo, é que algumas das propostas mais ousadas de ação estatal no combate à pobreza –idéias que vêm sendo encampadas por partidos de esquerda em todo o Primeiro Mundo– partiram de autores neoliberais.
Milton Friedman, por exemplo, propõe a criação de um"Imposto de Renda negativo" para os que ganham menos. A essência da proposta é substituir o vasto arsenal de benefícios fornecidos em espécie pelo Estado –em programas de habitação, educação, saúde, alimentação, seguro-desemprego etc.– por pagamentos diretos, em dinheiro, para os que recebem rendas mais baixas.
Isso reduziria o desperdício nos gastos sociais do governo e eliminaria boa parte do corporativismo predatório que sufoca o Estado. Além disso, permitiria também que a assistência aos mais pobres fosse melhor dirigida e até mesmo aumentasse. Com o Imposto de Renda negativo, as famílias de renda média e alta não teriam mais como continuar capturando –em benefício próprio e em detrimento de quem precisa– as transferências de renda extramercado via Estado do Bem-Estar.
Apenas com saúde, os norte-americanos gastam US$ 2,8 mil "per capita" ao ano. Os indicadores de saúde dos EUA, no entanto, são iguais ou piores que os de outros países desenvolvidos, que gastam a metade disso. O imposto negativo aumentaria o campo de escolha dos beneficiários, permitindo que eles próprios decidissem como gastar os recursos de que dispõem –mais em educação e alimentação, por exemplo, menos em saúde cara e ociosa.
Como reconheceu Galbraith recentemente, o Imposto de Renda negativo sugerido por Friedman é "a proposta previdenciária mais radical apresentada depois da Segunda Guerra; poucos economistas de esquerda podem ostentar a proposição de uma inovação tão impressionante".
Proposta análoga à de Friedman, vale notar, é aquela defendida por Hayek ao sugerir a criação de uma "renda mínima garantida" para todo e qualquer cidadão cuja capacidade de ganho no mercado fique abaixo de um certo nível.
Hayek, é verdade, é contra a instituição do salário mínimo. Mas, ao combater a tese de que alguém possa merecer um determinado salário no mercado, em vez de outro, ele não propõe que o indivíduo padeça à míngua caso perca o emprego ou a capacidade de obter renda.
É por isso que defende, para surpresa e choque inclusive de alguns admiradores, a criação de uma renda incondicional, financiada por impostos, para todos aqueles cujos rendimentos fiquem de outro modo abaixo dela.
A posição de Hayek (e da escola austríaca) sobre o papel do Estado na economia é bem resumida pelo filósofo inglês John Gray: "Rayek argumenta que o Estado possui funções positivas que incluem o suprimento de alguns bens públicos, a provisão de um nível mínimo de proteção contra a privatização aguda e a adoção de medidas para aprimorar a competição de mercado". Estado mínimo?
Como esses exemplos deixam claro –e muitos outros poderiam ser lembrados–, a crítica dos neoliberais ao Estado do Bem-Estar de forma alguma significa que eles defendam o seu desmantelamento puro e simples –como fazem os libertários– ou que eles não ofereçam alternativas de política social, voltadas para a sua substituição ou aperfeiçoamento.
Muito menos significa que eles não se preocupem com a situação dos grupos mais desfavorecidos, como se ouve com tanta frequência daqueles que se contentam em propagar, na imprensa e na mídia eletrônica tapuia, chavões e estereótipos infundados sobre o neoliberalismo.
"Apesar da retórica corrente", frisou Friedman em entrevista recente, "nossos problemas reais não são econômicos. Nossos maiores problemas são sociais: deterioração do ensino, criminalidade e desrespeito às leis, falta de moradias, o colapso da família, crise na medicina pública, gravidez precoce. Cada um desses problemas tem sido produzido ou exacerbado pelos esforços bem-intencionados do governo".
O neoliberalismo é falho em muitos pontos e omisso em relação a outros. Eu mesmo, em minha atividade de pesquisa acadêmica, julguei oportuno criticar em detalhe as crenças neoliberais sobre duas questões centrais da filosofia econômica: 1) o papel e a relevância da "guerra das idéias" no processo de mudança social; e 2) a explicação das variações comportamentais e da infra-estrutura ética que sustenta a democracia e o mercado.
Vou mais longe. Para países como o Brasil, o neoliberalismo tem relativamente pouco a dizer no campo da política social. O desafio da "acumulação primitiva de capital humano" –para adaptar o conceito de Marx– é um problema que nos aflige de perto, mas que as principais correntes neoliberais parecem assumir de antemão como resolvido.
Nenhuma doutrina econômica ou golpe ideológico irá salvar o mundo. Por isso mesmo, talvez não seja má idéia, para a esquerda brasileira, perder algum tempo estudando e tentando entender o neoliberalismo. Nem que seja apenas para perder este oblíquo fascínio que faz surgir o seu espectro maligno nos mais surpreendentes recantos.

Esta coluna deixa de ser publicada, excepcionalmente, nos próximos quatro domingos.

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