São Paulo, sexta-feira, 5 de agosto de 1994
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Em defesa da paz

ITAMAR FRANCO

A condução da política externa brasileira tem sua fonte de inspiração nos interesses permanentes do Estado brasileiro. Nossa atuação diplomática possui dinâmica própria, baseada na Lei Magna do país e em tradição jurídica fielmente observada.
No plano internacional, o Brasil age dentro dos limites definidos na Constituição Federal, de cuja elaboração participei como senador, na plena convicção de minha fé democrática. O artigo 4º da Constituição estabelece os princípios que regem as nossas relações internacionais, dentre os quais destaco a autodeterminação dos povos, não-intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz e solução pacífica dos conflitos.
Tanto na Carta das Nações Unidas como na Carta da Organização dos Estados Americanos, a comunidade internacional recomenda a busca de soluções negociadas para os conflitos internacionais. Apenas em última instância é admitido o uso da força, recurso que só adquire legitimidade em face de clara ameaça à paz e à segurança internacionais.
Baseado no Artigo 4º da Constituição e nas tradições jurídicas consagradas na Carta das Nações Unidas e na da OEA, determinei que o Brasil se abstivesse quando da recente votação pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas de Resolução que autorizou a constituição de força multinacional para intervir no Haiti, finalmente aprovada por 12 votos favoráveis e duas abstenções, a de nosso país e a da China.
No Conselho de Segurança, no qual o Brasil ocupa, até o final do corrente ano, uma das vagas de membro não permanente destinadas à América Latina e Caribe, a abstenção é um pronunciamento que significa na prática não-associação à ação recomendada ou aos propósitos da resolução. Não sinaliza indiferença ou indefinição.
As razões de princípio que motivaram a decisão brasileira foram apresentadas por nosso representante no Conselho de Segurança em declaração de voto, antes da votação.
Na declaração, relembramos o empenho brasileiro e os esforços por nós desenvolvidos em prol de uma solução pacífica para a crise desencadeada no Haiti após a interrupção violenta do processo democrático, em desafio à vontade da comunidade internacional, consignada em resoluções da OEA e do Conselho de Segurança da ONU.
O Brasil vê com profunda preocupação o desrespeito do regime "de facto" em Porto Príncipe à vontade soberana do povo haitiano, que havia conduzido pelo voto o presidente Jean-Bertrand Aristide à Chefia de Estado. Meu governo apóia e defende a restauração da democracia no Haiti.
Não estou convencido, no entanto, de que as medidas preconizadas na resolução do Conselho de Segurança contribuirão para a restauração da democracia, nem trarão alívio para o prolongado sofrimento do povo haitiano. Temo que a implementação daquela resolução tenha por resultado o agravamento dos problemas daquele país. A defesa da democracia não será favorecida pelo recurso a meios coercitivos de consequências imprevisíveis.
Na busca de solução permanente para a questão, era necessário esgotar todas as possibilidades de se alcançar uma solução pacífica, o que imporia a aplicação estrita das sanções dirigidas especificamente ao governo "de facto" e exigiria prazos adequados para avaliar os efeitos dessas sanções. Lembremos que as novas sanções encontram-se em vigor há apenas nove semanas.
Os poderes excepcionais do Conselho de Segurança no que se refere ao uso da força sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas não devem ser invocados de maneira indiscriminada –em nome da "busca de mecanismos mais ágeis" para responder a atentados contra a democracia– porque violam os princípios básicos da convivência pacífica entre os Estados e a normalidade doutrinária das Nações Unidas.
No que respeita à resolução em tela, foi transposta para o cenário latino-americano a conceituação desenvolvida em outros textos, relacionados a conflitos internacionais que pouco se assemelham ao caso do Haiti. A operação que ora se contempla inspira-se na resolução aprovada por ocasião da confrontação bélica no Golfo, situação de características políticas e jurídicas completamente distintas.
A posição brasileira é portanto coerente com nossa ação histórica em todos os foros internacionais, em particular no Conselho de Segurança.
Nossa atuação equilibrada refletiu as preocupações e os anseios de paz e autodeterminação da maioria dos povos americanos –tanto assim que países da América Latina como o México, Cuba, Venezuela e Uruguai, que não são membros do Conselho, lá estiveram para manifestar inconformidade com as modalidades de ação autorizadas pela resolução.
Não estamos convencidos de que se tenham esgotado os meios políticos para a solução da crise interna do Haiti. Há, a nosso juízo, outros instrumentos, mais efetivos do que as armas, para restaurar a paz e permitir o cumprimento da vontade democrática do povo haitiano, manifestada com a eleição do presidente Jean-Bertrand Aristide.
Permito-me citar, a propósito, o que disse, há 11 anos, o então governador Tancredo Neves, em Recife: "A guerra, ao contrário do que pensava Clausewitz, não é a continuação da política por outros meios, mas a sua frustração".

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