São Paulo, sexta-feira, 5 de agosto de 1994
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Ascetas modernos tomam conta da cidade

BARBARA GANCIA
COLUNISTA DA FOLHA

Em minhas pesquisas antropológicas pelos bueiros higiênicos da cidade, tais como as galerias de arte da Vila Madalena e o inferninho Cha Cha Cha, constatei o surgimento de uma nova casta sem eira nem beira. Trata-se dos ascetas do consumo, uma turma que apela a qualquer recurso para suprir o vácuo anímico.
O termo pode parecer contradição, mas não é. Esses ascetas do século 20 querem usufruir de todos os prazeres mundanos e, simultaneamente, pretendem elevar o espírito usando de recursos pequeno-budistas.
O asceta moderno finge imitar o comportamento austero do príncipe Siddharta, mas se esconde em casa para estourar uma pipoquinha Paul Newman no forno de microondas.
Ele frequenta templos budistas, pratica ioga, empesteia a casa de incenso com aromas de segunda e se vangloria das vivências transcendentais adquiridas em viagens de pacote turístico à Índia.
Ele se esforça para acreditar piamente em reencarnação. Mas, por via das dúvidas, retarda o apodrecimento da carcaça malhando feito louco e se entupindo de pílulas antioxidantes.
Claro, como diz o Dalai Lama, não é preciso abrir mão dos benefícios da terrena tecnologia moderna para atingir a espiritualidade.
Para alcançar o Nirvana não é preciso imitar São Francisco de Assis ou Madre Tereza. Mesmo porque, não há dúvida de que o desprendimento de São Francisco tem um quê de neurose, provavelmente causada por uma infância traumática. E, certamente, Madre Tereza de Calcutá alia dotes de benfeitora a um enorme dom para as relações-públicas.
O problema em relação aos ascetas modernos é a prepotência. Pretendem ser e ter tudo, mas tentam atingir seus objetivos nas coxas.
Dou um exemplo: há um mês, o paquistanês Nusrat Ali Khan apresentou-se na cidade. Khan interpreta o qawwali, um canto atonal que celebra a religiosidade muçulmana.
O auditório lotou de embevecidos ascetas modernos. Todos demonstravam ter grande intimidade com a cultura paquistanesa. Uma piada.
Quem salvou a pátria foi o agitador cultural Arnaldo Waligora, que foi embora no meio do show, dizendo: "Isso aqui está parecendo um mosteiro, não dá nem para tossir que o pessoal reclama".

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