São Paulo, sexta-feira, 5 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Desregulamentação oportuna

GESNER OLIVEIRA E ROBERTO PADOVANI

GESNER OLIVEIRA; ROBERTO PADOVANI
Excesso de regulamentação é uma herança indesejável se se quer modernizar o país e voltar a crescer
Em artigo nesta Folha de 15/07/94, o professor Francisco de Assis Machado Reis manifestou-se contrário à autorização contida na MP 542 do Plano Real de venda de medicamentos anódinos em supermercados, armazéns, empórios e lojas de conveniências. A legislação vigente até a MP 542 permitia a venda apenas em farmácias.
As objeções do professor Machado Reis suscitam um debate saudável sobre o ponto relevante da MP, mas os argumentos do autor não resistem a um exame mais cuidadoso. Vale a pena discutir quatro deles para perceber como a determinação da MP 542 não contém nenhum risco para o consumidor, mas pelo contrário, introduz modificação em seu favor.
1) Argumenta o autor que "a prescrição e dispensação de medicamentos são atos da maior responsabilidade e requerem profissionais de saúde, médicos e farmacêuticos, preparados para o seu exercício."
A preocupação parece legítima quando se trata de medicamentos que requerem prescrição médica. É o caso, por exemplo, da insulina, usada no tratamento da diabetes.
Ocorre, no entanto, que a ação de desregulamentação do governo vale apenas para medicamentos que independem de prescrição médica. Manteve-se, portanto, o respeito às atividades técnicas do médico e do farmacêutico naqueles casos em que estas são de fato necessárias.
Mais ainda: o legislador foi particularmente cauteloso ao restringir a providência a um subconjunto dos remédios de venda livre, aos chamados medicamentos anódinos.
Estes são medicamentos de eficácia momentânea, apenas para pronto alívio, tais como a aspirina e o sonrisal. A relação de anódinos é elaborada por meio de critérios técnicos pelo Ministério da Saúde e compreende, precisamente, aqueles medicamentos que não oferecem risco para o usuário.
A experiência prática demonstra, além disso, que a venda de anódinos dispensa maior especialização por parte dos estabelecimentos encarregados de sua comercialização. Da fato, a lei nº 5.991, de 17/12/73, já permite, em seu artigo 8º, a distribuição de medicamentos anódinos em hotéis e estabelecimentos similares. Não se tem notícia, nestes mais de 20 anos de vigência da referida lei, de problemas associados à comercialização de tais produtos.
2) O autor argumenta que "a medida do governo teria adotado a lógica simplória de que quanto mais "pontos de venda" (aspas no original) houver, maior concorrência, portanto, mais baratos os preços, confundindo medicamento com cachaça, refrigerante, sabonete ou outra mercadoria qualquer".
O autor induz o leitor à falsa impressão de que a medida governamental se restringe a aumentar os pontos de venda de remédios, sugerindo erroneamente que isto seria feito de forma massificada e irresponsável. Só faltou dizer que em virtude da MP 542 as barracas de feira livre passariam a vender penicilina ao lado de sandálias Havaiana.
Obviamente não se trata disso. A decisão acerca da desregulamentação da venda de anódinos (e apenas estes) parte de uma noção simples, aplicável a qualquer setor da economia.
Se existe algum tipo de reserva de mercado, o consumidor tende a pagar mais caro. Isto que a menor concorrência impede a redução da margem de lucro e o consequente barateamento da mercadoria.
Este fenômeno ocorria com a venda de anódinos antes da MP 542. Ao contrário daquilo que prevalece na maioria dos países desenvolvidos, apenas as farmácias podiam comercializar bens que, comprovadamente, não acarretam riscos maiores aos consumidores. Isto explica, em parte, a elevada margem de lucro –superior a 40%– destes estabelecimentos.
A medida governamental permite que outros agentes, como supermercados ou lojas de conveniências, com uma margem menor (inferior a 20%), venham a comercializar os anódinos. Estima-se, com isso, que, no médio prazo, o preço dos medicamentos possa ser reduzido para alguns produtos em até 30%.
3) O autor argumenta que "a medida fere a legislação sanitária."
A medida provisória 542 não fere a legislação sanitária, ao contrário do que afirma o autor. Apenas introduz alterações procedentes conforme demonstrado antes, visando aperfeiçoar a lei nº 5.991. De fato, os artigos 51, 52 e 53 da MP 542 alteram especificamente os artigos 6º, 17º e 19º daquela lei. Assegura-se, dessa forma, a fundamentação para uma nova disposição legal de incluir supermercado, armazém, empório, loja de conveniência e "drugstore" no elenco dos estabelecimentos que podem dispensar drogas e medicamentos anódinos.
4) O autor argumenta que se o governo quisesse efetivamente reduzir os preços dos medicamentos faria valer o decreto 793/93, que introduz os medicamentos genéricos.
Embora o professor Machado Reis tenha gasto mais da metade de seu artigo defendendo o decreto 793, não há contradição entre a determinação da MP 542 e o decreto 793. O governo apoiará todo e qualquer dispositivo que venha, de fato, baratear o preço dos medicamentos.
O excesso de regulamentação constitui uma das heranças culturais indesejáveis se se quer modernizar o país e retomar o crescimento sustentado. Em vez de estimular a competição e permitir a livre escolha do consumidor, certa mentalidade burocrática tem a atávica propensão de determinar por decreto o que é melhor para o consumidor.
Não foi por acaso que a desregulamentação representou uma das reformas mais importantes nos ajustes recentes de países como o México e a Argentina. Destaque-se, a propósito deste último país, que o decreto 2.284 de 1991 incluiu, entre outras providências, a desregulamentação da venda de medicamentos.
A exemplo daquilo que ocorreu na MP 542, a ação governamental no terreno da desregulamentação continuará sendo cautelosa, procurando sempre preservar regulamentação indispensável, como no caso de remédios que exigem prescrição médica ou nos inúmeros exemplos de falhas flagrantes do mercado.
A liberação da comercialização de medicamentos anódinos em diversos estabelecimentos é apenas uma expressão singela de uma política mais ampla de desregulamentação no Brasil. Tal esforço constitui uma das reformas fundamentais para eliminar o poder dos cartórios, modernizar a economia e, dessa forma, contribuir para consolidar o sucesso da estabilização.

GESNER OLIVEIRA, 38, é secretário-adjunto de Políticas Estruturais do Ministério da Fazenda, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e professor licenciado da Fundação Getúlio Vargas (SP).

ROBERTO PADOVANI, 27, economista, é assessor da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda.

Texto Anterior: Na mosca; Na mira; Multiplicando reais; Quem são; Sinal verde; Ainda não; Tempo de casa
Próximo Texto: Custo fica abaixo de R$ 100; mês acumula queda de 2,09%
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.