São Paulo, sexta-feira, 5 de agosto de 1994
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Só Jack Nicholson se salva em "Lobo"

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Filme: Lobo
Direção: Mike Nichols
Elenco: Jack Nicholson, Michelle Pfeiffer
Salas: Liberty, Gazeta e circuito
Acreditávamos todos que em Vermont não houvesse lobos e que o luar naquelas paragens, como insinua a letra de "Moonlight in Vermont", fosse uma epifania romântica. Ledo engano. A julgar pela cena de abertura de "Lobo" (Wolf), há lobos em Vermont. E em noites de lua cheia, eles atacam como em qualquer filme sobre lobisomem.
"Lobo" começa, pois, quebrando um tabu romântico e conservando uma tradição cinematográfica. A vítima é Will Randall (Jack Nicholson), figurão de uma editora de livros nova-iorquina. Era noite, muita neve, estava um breu na estrada, ele não viu o lobo –e bang! Será que o bicho morreu? Não, estava apenas ferido. Mas ainda com forças para morder a mão de quem o atropelara.
Corte. Dia seguinte. Ao ver Will com a mão enfaixada, um colega de trabalho indaga: "Você está doente?". "Um lobo me mordeu", responde Will. "Só estava perguntando", reage o assistente.
Tem-se aí –e nas cenas que se seguem– o vislumbre de um bom filme: esperto, bem escrito, diferenciado. À altura do seu orçamento e de sua equipe de profissionais. Além de Nicholson, Michelle Pfeiffer e Christopher Plummer, atrás das câmeras, a cuidar da direção, está o medíocre, mas prestigiado, Mike Nichols, apoiado nos italianos Giuseppe Rotunno e Ennio Morricone, responsáveis, respectivamente, pela fotografia e pela música. Sem contar que os cinco primeiros tratamentos do roteiro contaram com a chispa criativa do escritor Jim Harrison.
Enquanto Will não vira definitivamente um homem-lobo, a questão da licantropia fica à margem da trama principal: um duplo caso de traição nas altas esferas literárias de Manhattan. Quando a editora que Will comanda é comprada por um "big shot" (Plummer) que só pensa em lucro fácil, o lobisomem em botão perde o emprego e a mulher (Kate Nelligan) para o mesmo mau-caráter, Stewart (James Spader), um dos mais untuosos carreiristas do cinema dos últimos tempos –um Peter Lorre yuppie, na definição perfeita de um crítico americano.
Toda essa parte, movida a golpes baixos e bem-humoradas tiradas sobre o meio literário e a indústria editorial, tem mais a ver com o sofisticado mundo de Woody Allen (refeições no Jason's, referências a escritores etc.) do que com um filme de horror.
Aos poucos, porém, o horror começa a tomar conta da situação, no mesmo ritmo da metamorfose de Will. Sutil, a princípio. E sobretudo divertida quando o personagem descobre algumas vantagens na licantropia: olfato, audição e visão de super-homem, amplificação da virilidade e manutenção das virtudes morais. Will é um paladino da literatura de qualidade, um modelo de retidão. Não será, portanto, um lobo mau.
Mais: com seu id peludo, Will está pronto para enfrentar qualquer inimigo, inclusive os pivetes do Central Park.
Até esse ponto, "Lobo" se sai galhardamente, misturando no mesmo saco Kafka, Jung, Robert Bly, e oferecendo a Nichols a oportunidade de se revelar um autor, visto que Jack Nicholson replica em escala maligna a mesma crise da meia-idade metaforizada por Harrison Ford em "Uma Segunda Chance". E ainda sobra espaço para outra metáfora, de resto a mais interessante do filme, fundindo licantropia e capitalismo. Afinal de contas, onde o capital predomina, o homem é o lobo do homem, certo?
A partir de determinado ponto, degringolada geral e irreversível. O que prometia se encaminhar para o horror insinuante de "Sangue de Pantera" (de Jacques Tourneur), descamba para o horror convencional de "A Marca da Pantera" (de Paul Schrader), não se furtando a copiar deste uma sequência filmada no zôo do Central Park. Como, por incoerente pudor, Nichols evita o horror descritivo, sonegando ao espectador as imagens mais impressionantes da transformação de Will em Wolf, nada mais natural que a platéia tenha poucos motivos para sentir o que um filme como "Lobo" tem a obrigação de oferecer: medo e aflição.
Pairando acima de tudo, Jack Nicholson, em soberba atuação. Sem ele, "Lobo" seria um horror. No mau sentido.

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