São Paulo, sexta-feira, 5 de agosto de 1994
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Trabalho infantil é pior que mendigagem

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um documento impressionante acaba de ser publicado pela editora Paz e Terra: é o livro "Crianças de Fibra", com fotos de Iolanda Huzak e textos de Jô Azevedo.
Trata do trabalho infantil no país. Fabricação de sapatos, colheita de sisal, carvoarias, canaviais: essas atividades empregam gente muito pequena, pagando salários menores ainda. Passo os olhos pelo livro, quase sem acreditar.
Fotos mostram um menino de 11 anos com um saco de 30 quilos nas costas, praticamente do seu tamanho. Ou um pequeno carvoeiro posando com um garfo enorme, maior que ele, usado para ensacar carvão.
As fotografias de Iolanda Huzak, em preto-e-branco, são de uma nitidez total. O que mais chama a atenção é o fato de que os rostos, os traços das crianças continuam a ser o que sempre são: infantis, delicados, bonitos. Dostoievsky disse que toda criança é bonita.
Ao mesmo tempo, vemos essas crianças na atitude concentrada, adulta, séria, de quem trabalha muito. Não é sequer o caso de aludir aos riscos de acidentes de trabalho (há fotos sobre isso) ou da insalubridade envolvidos nessa situação. Impossibilidade de estudar, salários minúsculos, tudo isso está no livro.
Fico pensando em outra coisa. Se essas crianças, em vez de trabalhar, ficassem pedindo esmola num cruzamento dos Jardins provavelmente ganhariam muito mais dinheiro do que nas desumanas jornadas a que se submetem.
Um menino de 13 anos, trabalhando como cambiteiro –leva a cana cortada para o engenho– das 5h30 às 17h, ganha US$ 3 por semana. Quebrando pedra, o garoto de 11 anos recebe pouco mais de US$ 2 semanais. O mais carente dos menores carentes num cruzamento em São Paulo deve ganhar dez vezes isso.
A pergunta que fica não é mais aquela clássica, de por que essa gente não se revolta, mas outra: porque essa gente não mendiga?
A Folha publicou, domingo passado, reportagem sobre famílias de carvoeiros que, sem ter nem um rádio, ignoravam que o Brasil tivesse ganho a Copa do Mundo, e mal conheciam o dinheiro.
Algumas lições podem ser tiradas de fatos como esses. A primeira é o quanto a nossa "consciência social", nossas preocupações com a miséria, são elas próprias submetidas a uma espécie de distorção de classe.
Pois quando pensamos em miséria, não imaginamos até onde ela pode chegar. Criticamos o baixo salário mínimo –mas o salário mínimo já seria uma fortuna para essas crianças. Temos pena dos moleques no sinal de trânsito, ficamos estarrecidos com as favelas urbanas –mas há realidades ainda piores. E ser mendigo pode até significar ascensão social.
Outra questão a ser pensada: crianças que trabalham britando pedra ou colhendo cana parecem ter, em geral, uma estrutura familiar bastante sólida. Ajudam os pais, têm um teto. Os menores abandonados dos grandes centros urbanos não têm isso.
Surgem daí algumas ambiguidades. Imagino, em primeiro lugar, que as crianças trabalhadoras na área rural são submetidas a uma dupla opressão. Não só a opressão física, econômica, impessoal da fábrica ou da fazenda, mas também a opressão familiar –o pai que as obriga a "ajudarem" no serviço.
Por outro lado, há a segurança emocional de se estar em família, coisa que os menores abandonados não têm. Concluo que a superexploração a que estão expostas as crianças trabalhadoras é como se fosse um imposto, uma taxa que elas pagam pela preservação do núcleo familiar.
E também que a estrutura familiar, com sua mescla de afeto e autoritarismo, é uma máquina a serviço do capitalismo selvagem. Permite o pagamento de salários ínfimos.
Claro que, quanto maior a miséria, mais ela será percebida como "destino". Um garoto, no livro da Paz e Terra, diz que "estudar não dá futuro" para quem trabalha num canavial. Filhos de gente que sempre trabalhou em condições terríveis não vêem outro caminho senão reproduzir a realidade que conhecem através dos pais.
Sempre que se fala de crianças, desconfio de uma tentação generalizada pela pieguice. "Criança Esperança", coisas do gênero, deixam-me com um pé atrás. As condições de trabalho na colheita de cana são horríveis, e claro que mostrar crianças nessa vida aumenta o choque do livro. Mas o que é inadmissível para crianças também o é para adultos.
Um economista certa vez me disse, friamente: o problema social no Brasil deriva do excesso da mão-de-obra. É claro que não precisava ser tão privê, que o quadro da distribuição de renda pode e deve ser corrigido. Mas o dado objetivo permanece. Depende menos da famosa "vontade política" das pessoas do que de fenômenos de longo prazo, como a redução da taxa de natalidade, uma alteração significativa da realidade que vemos hoje em dia.
Isto, por várias razões. A chamada "vontade política" pode, sem dúvida, espalhar Cieps pelo território, fazer obras de irrigação, reforma agrária, mudanças na estrutura fiscal.
Mas o termo "vontade política" tem sido empregado com certo abuso. Desconfio quando se fala, por exemplo, da irresponsabilidade social de nossas "elites". Não que essa irresponsabilidade não exista. Mas é duvidoso que, nos outros países, a classe alta seja menos aferrada a seus privilégios do que aqui.
O problema da redistribuição de renda não se esgota, creio, nas pressões populares ou na maior ou menor consciência que todos tenham de que é necessário acabar com a pobreza.
Provavelmemte, uma ação de maior justiça social exigiria mudanças bem mais profundas do que parece: uma reorganização do parque industrial brasileiro, uma verdadeira revolução nos hábitos de consumo da classe média, um outro tipo de "modernidade", bem distante do ideal de fazer do Brasil uma espécie de Miami.
Não sei se, na prática, os limites ideológicos e econômicos para uma reforma dessa amplitude não se fariam sentir com extrema diversidade e rapidez.
É difícil conciliar prudência e planejamento político com a indignação que fotos como as do livro de Huzak e Azevedo suscitam. Tendemos a introjetar, na nossa consciência individual, problemas de âmbito macroeconômico e histórico. E é sobretudo com vergonha deste país que colocamos "Crianças de Fibra" na estante de casa.

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