São Paulo, sexta-feira, 5 de agosto de 1994
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Abóbora guarda memória do brasileiro

HAMILTON MELLÃO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Toda vez que um animal silvestre está prestes a desaparecer, os ecologistas esperneiam. No Brasil, centenas de receitas desaparecem todo ano e ninguém diz nada. Seja pela criminosa queima de um caderno de receitas da avó ou pela morte natural de alguma anônima cozinheira.
Mesmo que instintivamente, a cozinha é feita de técnicas e métodos e isso deve ser respeitado. Toda vez que alguém pensa um novo prato, deve levar em consideração duas ponderáveis: uma é a ingestão de calorias, outra é a experiência gustativa. Ingestão de calorias é matéria e a experiência gustativa é substância. Matéria será sempre matéria, mas a substância é a matéria elevada à potência de idéia.
A França, um país com profunda consciência de sua cultura culinária, teve uma tríade básica na sua formação; a cozinha dita pobre, imutável e que respeita na sua simplicidade a essência do alimento; a cozinha dos nobres, nervosa, ágil, instigante e sempre investindo na criatividade; e finalmente a cozinha burguesa que é a união dessas duas.
A Itália, por sua vez, teve uma burguesia industrial muito tardia, o que fez com que só existissem as duas culinárias basilares.
No Brasil, conhecemos só a cozinha pobre, a influência da corte portuguesa nos nossos hábitos alimentares foi exatamente nenhuma. A autêntica culinária da terra é esquecida e menosprezada como se tivéssemos vergonha do passado.
Nela se destaca, por exemplo, a generosa abóbora. Planta de facílimo cultivo, farta produção, simples armazenagem e digna de incontáveis variantes; assada, frita, cozida, na forma de sopas, bolos, tortas, doces e refogados, aproveitando-se até a sua delicada flor, bem como as suas sementes secas, que os italianos chamam de "scherzo da mangiare" ou divertimento comestível.
Ela foi basicamente e por séculos a guarnição do feijão e da caça do colonizador, sendo praticamente sua única fonte de vitaminas. Como sabemos, eles nunca gostaram dos verdes como chamavam as verduras. "Capim é comida prá engordar boi", ouve-se do caboclo ainda hoje.
É prazeroso folhear o livro "O Cozinheiro Nacional", que foi a primeira compilação do receituário brasileiro –edição de 1890– e ver a abóbora ser exaltada nos mais diversos acepipes, figurando quase que sozinha como rainha do acompanhamento do brasileiro.
Coincidentemente, logo após o lançamento desse livro, a crescente influência da Europa no cenário mundial e a chegada dos imigrantes provocam seu aculturamento, não só dos meios acadêmicos como também das mesas. Pouco a pouco fomos perdendo a nossa identidade regional nas nossas mesas. Com o passar das décadas, cada vez mais embasbacados com as idéias européias, tornamo-nos xenófilos, rejeitando tudo o que foi criado em 400 anos.
Perdeu-se com essa influência alienígena uma identidade cultural ainda no nascedouro e que, apesar de ter quatro séculos, não podia competir com a robustez do pensamento francófilo, por exemplo. Muito mais triste agora é quando nos últimos anos vemos –que triste– a americanização da cozinha paulista, importando a melancolia dos fast-foods.
Gourmets, não existe um restaurante de cozinha paulista nesta megalópole, se olvidarmos uma pesquisa e propagação das nossas raízes, corremos o risco de ao bater as 12 horas, nos transformarmos em vez de abóboras, todos infelizes Cinderelas.
Uma Receita
A seguir, você encontra uma receita de "sopa de abobora amarella", presente no livro "O Cozinheiro Nacional" e aqui reproduzida em sua grafia original.
"Cozinha-se num pouco de caldo uns pedaços de abobora amarella. Quando estiver bem cozida passa-se numa peneira fina. Engrossa-se com esta, o caldo, deixando-o ferver devagar.
Na ocasião de se despejar a sopa na terrina liga-se com uma colherinha de farinha de trigo e uma chicara de leite e deixa-se ferver um pouco para que a massa de abobora não fique assentada no fundo.
Se gostar adicione-se algumas flores de abobora. Serve-se com fatias de pão torrado passadas na manteiga".

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