São Paulo, sábado, 6 de agosto de 1994
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Ruandeses não estão voltando, diz médico

ANDRÉ LAHOZ

De Paris Philippe Biberson, 38, é o presidente francês da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras.
Criada em 1971, a organização tem tido presença marcante no apoio médico prestado em diversas crises humanitárias (foi a única a atuar na Somália em 91-92).
Está sendo a mais importante em Ruanda, com mais de 2.000 pessoas trabalhando nos países da região. Biberson chegou ontem a Paris, onde concedeu entrevista exclusiva à Folha, após ter passado oito dias em Ruanda e no Zaire.

Folha - Como está a situação hoje em Ruanda e nos campos de refugiados no Zaire?
Philippe Biberson - O número de refugiados é gigantesco. No Zaire, nós achamos que há cerca de 800 mil pessoas na região de Goma (fronteira noroeste de Ruanda) e 80 mil próximos a Bukavu (fronteira sudoeste).
Na zona sob controle do Exército francês, esse número deve estar entre 350 mil e 400 mil pessoas.
Além disso, há aqueles que não estão nos campos de refugiados. Quanto a esses, não podemos nem contar quantos são, nem ajudá-los.
Todas essas pessoas vivem em uma situação muito difícil, com pouca água, pouca comida e muitas doenças.
Folha - Qual é o maior problema hoje na região?
Biberson - Acho que é a falta de comida, tanto em quantidade como em qualidade. Deveríamos ter mais ou menos o dobro daquilo que chega aos refugiados.
Atualmente chegam cerca de 300 toneladas de alimentos por dia, sendo que o mínimo necessário são 500 toneladas.
Folha - Como está a epidemia de cólera?
Biberson - Acredito que possamos dizer que não há mais epidemia em Goma, pois há uma diminuição no número de mortos e de novos casos.
O mais grave atualmente é a disenteria. Para cada caso de cólera, há cerca de dois ou três de disenteria, uma doença mais longa e difícil de curar.
Sobre o cólera, é certo que ele vai chegar a outras regiões e outros países. Não será tão grave, pois as condições de vida nesses lugares não são tão extremas.
Folha - Quantas pessoas morreram de cólera em Goma?
Biberson - É muito difícil saber. Há números em torno de 30 mil mortos, e mesmo mais, mas ninguém sabe ao certo.
Muitos desses mortos podem ter tido outras doenças. Há uma estimativa indicando 25 mortos para cada 10 mil pessoas por dia.
Para que se tenha uma idéia, o número considerado catastrófico é de dois mortos para 10 mil.
Em termos de mortalidade total, pode estar entre 2.000 e 2.500 por dia, algo totalmente inaceitável.
Folha - Os refugiados estão voltando para suas casas?
Biberson - Não podemos dizer que há um movimento de volta. Algumas famílias estão retornando, mas são casos isolados.
A FPR (que tomou o poder em Ruanda) anunciou que na região de Goma cerca de 70 mil pessoas voltaram. Não temos como afirmar se isso é verdade ou não.
Folha - Qual é a ação dos MSF no momento?
Biberson - Em primeiro lugar, tentamos controlar o cólera e a disenteria. Além disso, fornecemos água potável para os refugiados.
Atualmente, estamos entregando cerca de cinco litros de água por dia para cada pessoa. O ideal seriam 20 litros. Também estamos dando vacinas contra o sarampo.
Folha - Como vocês conseguem dinheiro para tudo isso?
Biberson - Houve muita solidariedade, não apenas na França mas em vários países.
As doações aumentaram muito, mas é preciso que essa solidariedade continue, pois há ainda muito o que fazer.
Folha - Qual é a sua opinião sobre a atuação do governo francês no conflito?
Biberson - O governo francês fez coisas importantes em Ruanda. Pode-se pôr em questão os motivos da intervenção francesa, mas não há como negar que muitas coisas foram positivas.
Folha - Qual é a rotina dos médicos em Ruanda?
Biberson - É um trabalho muito difícil, principalmente nas primeiras semanas. É muito fatigante, tanto física quanto moralmente.
Há muito o que fazer, e, como não somos muitos, o resultado é que dormimos muito pouco.
Paramos para comer quando dá, não há muita água, ou seja, é um trabalho muito difícil. Ainda mais porque o espetáculo é horrível, com tantos mortos, mutilados, órfãos, doentes etc.
Folha - O que o sr. sentiu nos campos de refugiados?
Biberson - É muito desencorajante ver o que se passa nesses campos. É o total abandono, a perda da dignidade humana.
A sensação que tive é que a pessoa humana não representa nada e que chegamos no fundo do poço.
Pessoas vivendo ao lado de cadáveres, crianças mexendo nos corpos, nenhuma esperança em seus olhos.
É algo realmente horrível e indescritível, só mesmo estando lá para entender o que se passa.
O que é extraordinário é sentir que, aos poucos, nosso trabalho consegue ir restaurando a dignidade dessas pessoas.
Começamos por retirar os corpos, muitos dos quais já completamente apodrecidos. Isso deu novas forças a todos que ali estavam.
Muitas vezes o nosso trabalho não representa muito em termos de números, pois somos poucos para ajudar milhares, quando não milhões, de pessoas.
Mas é importante para devolver, ao menos em parte, o sentido da vida dessas pessoas.

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