São Paulo, domingo, 7 de agosto de 1994
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A maldição de Golbery

FRANCISCO C. WEFFORT

Nos idos de 1979/80 quando se procedia à reforma que deu origem ao atual sistema partidário,o general Golbery teria dito que lula jamais seria um político, jamais deixaria de ser um sindicalista.Da arena surgiu o PDS, do MDB vinha o PMDB, um pouco a margem renascia o PTB e, ainda mais à margem aparecia o PDT. Na raia pesada dos de fora do sistema , Lula insistia no PT.
Intelectual de influencia e poucas falas , a imprensa atribuiu tanta coisa a Golbery que as vezes fica difícil saber o que ele realmente disse.
Minha impressão , neste caso, é que ele apresentava um paradoxo, não apenas sobre Lula , mas sobre toda esquerda.Intelectual mais fino do que nós poderiamos reconhecerna época do regime militar, acredito que Golbery veria o cenário eleitoral de hoje com ironia.
De um lado,um líder sindical que ele acreditava jamais chegaria a ser um verdadeiro político.De outro FHC, um intelectual que, eleito suplente de senador em 1978,aliás com apoio de Lula,passou a dedicar-se à política como atividade regular. Depois dos desgovernos que se sucedem desde Figueiredo, teria chegado a vez da esquerda dirigir o país?
- perguntaria o general.
Talvez perguntasse mais. O sindicalista tem reivindicações, tem, por assim dizer, políticas de sociedade, mas,diria Golbery, não tem políticas de Estado. Mas continua de esquerda?
Há quem diga que, na época atual, a esquerda só tem política na oposição.Quando chega ao governo (ou perto dele), adota as políticas da direita.
Evidentemente, certos objetivos são obrigatórios: estabilizar a moeda, reformar o Estado,aumentar o nível de emprego, desenvolver as áreas de educação, transportes e saúde, retomar o crescimento, redistribuir renda, abrir para o capital estrangeiro, estimular a pequena e média empresa, etc. Isso se impõe a quem tenha um mínimo de realismo.
Os critérios para distinguir entre esquerda e direita porém, são outros: quem paga? quem perde, quem ganha? Senão há políticas de estado sem sacrifícios como distribuí-los.
Há enormes equívocos em torno desse assunto.Uma senhora racionária disse um dia destes nesta Folha que "a nossa opção é entre Sartre e um encanador ". Como ela é muito ignorante , confundiu torneiro mecânico com encanador. Mas errou mais do que isso .
Seu inacreditável preconceito de classe a empurrou para a questão errada. A questão é a de saber qual a política do torneiro e qual a de "Sartre". Se a campanha de FHC caminhar por aí , ele vai terminar nos lencinhos brancos do brigadeiro Eduardo Gomes. Sabemos no que deu. A propósito qual seria a política do próprio Sartre se vivo?
Voltemos ao que interessa. As eleições em curso podem mudar o mapa político do país. Uma chance a mais para os discursos de mudança que vem se repetindo desde os anos 70. Uma chance, porém, que só se realizará se viermos a superar umas tantas dificuldades que afetam a credibilidade dos candidatos.
No caso de FHC, o problema maior é o PFL, para não falar do PTB, a regra é a fisiologia. Como FHC apresentará, por exemplo, as suas reformas de Estado com tantos representantes do "populismo econômico" em seu palanque? Como apresentará suas propostas de reforma agrária, tendo ao seu lado figuras tão clássicas do conservadorismo rural?
Evidendemente, pessoas mudam. Sempre há excessões, mas no caso do PFL, porque imaginar que isso viesse a ocorrer agora, por exemplo com o vice Maciel , com seus trinta anos de presença em uma estrutura de poder que, na sua região, nunca mudou nada em benefício da modernização da democratização e da participação popular?
Na trajetória inversa, é evidente que o ponto débil da imagem de Lula é o estado e, para falar nos termos de período militar, a sua "absorção" pela elites.
Tão notável tem sido o seu crescimento político ( e o do PT), que alguns acabaram se esquecendo da frase de Golbery. Foi, porém, um erro.
Fundador de um partido e de uma central sindical, Lula é um caso extraordinário de êxito na história dos movimentos sociais contemporâneos.Contudo, o desafio proposto por Golbery é outro: como construir políticas de Estado a partir dos movimentos sociais?
Hoje, tal pergunta significa o seguinte : como apresentar não somente a imagem do sindicalista que reinvindica mas a do estadista que resolve os problemas?
Problemas de identidade costumam gerar falhas de credibilidade.O intelectual brilhante que se alia aos conservadores, pode vender fácil a imagem de estadista. Mas e as reformas? O grande sindicalista pode apresentar com facilidade as reformas que deseja, mas lhe é mais difícil mostrar que pode se tornar um estadista para realizá-las.
Em todo caso, não há problemas. Das ligações de FHC com os conservadores não se pode concluir que ele se tenha tornado um deles. Suas ligações com o Estado são anteriores e, talvez, mais importantes.
No caso do Lula, só mesmo o preconceito mais estúpido poderia excluir a possibilidade de que, um construtor de instituições como ele, venha a superar os limites que até aqui foram lhe impostos pelo jogo do poder no país.
Em qualquer hipótese, o certo é que nas eleições de 1994 muita coisa vai mudar na política brasileira. Não mudarão apenas as identidades políticas de Lula e de FHC. Talvez mude também um pouco, e para melhor, a identidade do país.

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