São Paulo, segunda-feira, 8 de agosto de 1994
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Rio vê tesouro arqueológico de Freud

SERGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Quem conhece o Museu Freud, em Londres, ao menos de fotografia, sabe o quanto o pai da psicanálise era chegado a velharias. Seu lendário consultório, primeiro em Viena, depois em Londres, não abrigava apenas livros, quadros, um divã e um sofá. Por todo canto, em cima de mesas, em armários e nos espaços vazios da estante, o velho Sigmund espalhou uma respeitável coleção de objetos arqueológicos –egípcios, gregos, romanos, assírios, sumérios, chineses, etruscos, mexicanos e peruanos–, que, de tanto crescer, se dispersou pelos demais cômodos da casa.
Ao todo, cerca de 2.000 peças. Estatuetas, vasos, garrafas, placas, tampas de sarcófagos, jóias, fragmentos de pinturas em gesso, papiro e linho. Há três dias, os cariocas estão vendo de perto 110 dessas relíquias, trazidas de Londres pela diretora do Freud Museum, Erica Davies. Em outubro, elas desembarcam em São Paulo.
Quem mais se mexeu para que essa exposição itinerante (EUA, 1989; Bélgica, 1993; Holanda, 1994) chegasse até o Museu Nacional de Belas Artes foi o editor Geraldo Jordão Pereira, da Salamandra, que, além de um patrocinador (Banco Real), providenciou a confecção de um caprichado catálogo sobre as íntimas relações entre Freud e a arqueologia.
Por trás dessas relações, duas figuras paternas: o pai espiritual (Jean Martin Charcot) e o pai verdadeiro (Jacob Freud). Em 1885, ainda extasiado com as antiguidades indianas e chinesas do primeiro, Freud comentou: "A casa de Charcot é um mundo de sonhos". Em 1896, logo após a morte do segundo, adquiriu as suas primeiras estatuetas, em Florença. E não mais parou.
Interpretação de uma corrente freudiana: como os judeus, que antes da chegada de Moisés se entregavam à adoração de imagens, Freud teria retornado à iconolatria ao perder o seu Moisés, ou seja, Jacob.
Houve ainda quem interpretasse a arqueologite freudiana como uma ânsia de imortalidade e poder. Ou, prosaicamente, como um esforço para dotar a psicanálise da mesma respeitabilidade desfrutada pela arqueologia. Peter Gay, biógrafo de Freud, comparou o vício infantil de colecionar coisas aos primeiros prazeres eróticos, lembrando que Freud vivia a namorar com os olhos as antiguidades sobre sua escrivaninha e, vez por outra, não resistia à tentação de acariciar as suas preferidas.
Uma dessas favoritas era um babuíno de Thot (deus egípcio da Lua e da sabedoria), presente na mostra do MNBA. Outra: o bifronte "Balsamarium", bronze do século 3 a.C., desencavado na Etrúria, representação dualística bem ao gosto do mestre. Eros, Esfinge, Atena, Ísis também o seduziam, por razões óbvias. Tão óbvias quanto as que o levaram a montar um apreciável acervo de fálicos amuletos votivos.
Em mais de uma oportunidade, Freud deu a entender que a psicanálise era uma espécie de metáfora da arqueologia. As peças que colecionava seriam objetivações das descobertas por ele feitas no terreno da subjetividade. Se civilizações há milênios soterradas podiam ser reconstituídas a partir de fragmentos, por que estados mentais reprimidos não podiam aflorar a partir de lembranças exumadas no divã psicanalítico?
Além das peças, Freud juntou um punhado de livros sobre escavações, intensas e reveladoras, entre o final do século passado e o começo deste. "Na verdade, li mais sobre arqueologia do que sobre psicologia", confessou a Stefan Zweig. Talvez haja um pouco de exagero nesta frase, mas de cultura antiga ele de fato entendia um bocado. Mas, por razões de segurança, não abria mão da expertise de profissionais. O que não o impediu de adquirir algumas cópias, mantidas na coleção por motivos puramente afetivos.
Teve sorte de viver numa época em que antiguidades tinham pouco valor de mercado, especialmente em Viena, onde a moda eram os estilos barroco e Biedermeier. Um vaso grego que hoje talvez custasse uns US$ 20 mil podia ser comprado por menos de US$ 200 no antiquário de Robert Lustig, habitual vendedor de Freud. Pechinchas não eram incomuns. A estatueta de Ísis amamentando Horus (Egito, século 6 a.C.), em exibição na mostra, foi achada por Lustig no canto de um bricabraque, nos arredores da capital austríaca. O dono da loja vendeu-a pelo peso do bronze.
Ao fugir para a Inglaterra, Freud levou tudo, com o consentimento das autoridades nazistas. Graças a uma avaliação indulgente do acervo, combinada com o diretor do Museu de Viena, pagou de taxa apenas o equivalente a US$ 100. Em setembro de 1938, a coleção chegou a Londres. "Ela ficou melhor aqui do que em Viena", comentou Freud com uma amiga. Aqui era o número 20 de Maresfield Gardens, no bairro de Hampstead, onde ele só viveria um ano.
Por falar em morte, suas cinzas, assim como as de sua mulher, foram guardadas numa milenar urna grega, doada ao casal pela princesa Marie Bonaparte.

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