São Paulo, sexta-feira, 12 de agosto de 1994
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Quércia, o inocente

WAGNER GONÇALVES

A argumentação do ex-governador Quércia emseu artigo seria cômicase não fosse trágica
A denúncia não recebida contra o ex-governador Orestes Quércia contém elementos suficientes para confirmar que houve superfaturamento na compra de equipamentos de Israel. Comprovou-se que houve destinação de recursos, pelo ex-governador, para a efetivação da importação com dispensa de licitação. Estes e outros elementos não foram suficientes para ser aberta ação penal, no entender do Superior Tribunal de Justiça.
Continuará a denúncia, contudo, contra os membros do segundo escalão, ou seja, aqueles, prepostos, que formalizaram efetivamente os atos. Se a denúncia não for recebida também contra esses, nada teria havido de ilegal ou irregular na importação, mesmo evidente o superfaturamento.
Apesar de decisão judicial não ser passível de críticas, a não ser nos limites dos autos, o caso em epígrafe é exemplar para evidenciar as dificuldades de o Ministério Público Federal promover a responsabilização daqueles administradores, de escalões superiores, que acarretem prejuízos aos cofres públicos.
As filigranas jurídicas, "in casu", impossibilitaram sequer de haver denúncia, sendo que esta é que permitiria completar, após, no curso da ação penal, a instrução criminal.
Não havendo denúncia e, consequentemente, a instrução, houve, de certo modo, a inocentação do acusado, ao mesmo tempo em que se nega ao Ministério Público a titularidade da ação penal.
Em momento de eleição, tudo é conspiração. De um lado, o ex-governador vem a público para dizer que o PT, infiltrado no Ministério Público Federal, "armou" a denúncia, ao mesmo tempo em que afirma (Folha de S. Paulo, de 9/08/94), que os procuradores envolvidos na denúncia objetivavam "promoção pessoal e ascensão na carreira, face à notoriedade e prestígio público decorrente do caso".
Tudo isso é cômico, se não fosse trágico. O Ministério Público Federal exerce suas funções "de ofício" ou por provocação.
Ora, havendo representação, cumpre ao procurador investigar, sob pena de falta funcional. Negar, de antemão, tal ou qual representação, ou mesmo se negar a fazer a denúncia, desvalorizando indícios veementes de crime, sob o argumento de que "há possibilidade, mas não há probabilidade", seria, para o Ministério Público, que representa o Estado na persecução criminal, agir como julgador, a partir de outras variáveis, que lhe não foram postas, ou, se o foram, mereciam, ser objeto de instrução criminal, no curso da ação penal.
Assim agiram os procuradores e o subprocurador-geral da República que atuaram no caso. Fizeram o que lhes competia fazer, oferecendo a denúncia. Ao Tribunal competia aceitá-la ou não. Na primeira hipótese, seria feita a instrução, como mencionado. Preferiu aquela corte rejeitar a denúncia, não permitindo a instrução. E o seu veredicto é soberano.
Entretanto, entre a decisão e as ilações que este ou aquele candidato ou parlamentar faça, mesmo o ex-governador Quércia, no sentido de existir "esquema" no Ministério Público Federal para prejudicar o candidato, medeia um oceano.
O trabalho do Ministério Público Federal no caso foi sério e imparcial. Só com muito esforço foi possível obter dados e elementos.
Um delegado de polícia foi afastado e denunciado por prevaricação, corrupção passiva privilegiada e outros delitos. Vários recursos foram interpostos, inclusive pedidos de correições parciais, face ingerências indevidas do então juiz da 4ª Vara Criminal em São Paulo, que dificultava o andamento normal do inquérito.
Ficou provado no inquérito o superfaturamento e a existência de fraude, assim como demonstrado que os atos praticados pelo ex-governador tinham relação de causa e efeito com o prejuízo sofrido pelos cofres públicos.
Quércia autorizou, por despacho, a ampliação dos limites da importação da Secretaria de Ciência e Tecnologia, reportando-se expressamente às importações, que seriam feitas em face do protocolo que ele mesmo (como governador) assinara com Israel.
Em seguida, mediante assinatura de decreto, aumentou a dotação orçamentária dessa secretaria no mesmo valor das importações que seriam feitas.
Tais atos foram praticados meses antes de ser dispensada a realização de licitação, sob o argumento das empresas israelenses serem, no mercado mundial, as únicas fabricantes dos produtos (sic).
Num ofício enviado anteriormente ao então presidente Sarney, o ex-governador já atestava que os bens a serem importados não tinham "similar nacional".
Por tudo isso, entendeu o Ministério Público Federal haver prejuízos aos cofres públicos, relação de causa e efeito entre os fatos delituosos e atos do ex-governador e o dolo seria provado quando da instrução, motivo pelo qual não o poupou da denúncia.
Se esta não foi aceita, cumpriu o Ministério Público Federal sua obrigação, em defesa da coisa pública. E outro não poderia ser seu procedimento.
Aliás, todo o trabalho, que se iniciou em São Paulo, passou pelo crivo do subprocurador-geral da República, Paulo Sollberger, autor da denúncia, que, por estar ocupando cargo final de carreira, não necessita, como insinua Quércia, de "promoção pessoal para galgar outras posições na carreira".
É lamentável que tenhamos de assistir acusações levianas, em desfavor de uma instituição cujos membros tentam, a duras penas, cumprir com suas obrigações.

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