São Paulo, terça-feira, 16 de agosto de 1994
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Só o mercado pode produzir talentos reais

ARNALDO JABOR

Da Equipe de ArticulistasNão estou com paciência de fazer um arrazoado sobre "cultura" com princípio, meio e fim, para depois só pegarem as brechas do que eu disse e me destroçarem, como se eu quisesse que artistas virassem comerciantes. Não sou da Bolsa. O que eu disse foi: "O Estado precisa de uma política econômica que torne atraente e lucrativa para os empresários a produção de arte em geral e filmes em especial". Do contrário, tudo continuará a eterna punheta lamentosa.
Assim, vou misturar aforismos com estorinhas e depois ponham a carapuça que quiserem, em mim e em vocês.
O artista (e cineasta) brasileiro está rachado entre um nascente capitalismo e o patrimonialismo antigo. É um parto difícil. Algumas vítimas desta guerra: Glauber Rocha, Joaquim Pedro, Leon, Fernando Campos, Roberto Santos. Está na hora de acordar e lutar pela vida. "A felicidade é uma virtude guerreira" (O. Andrade).
Lenine disse: "Fora do poder, tudo é ilusão". No hall do American Express, há uma frase em grandes letras de metal: "Nada existe fora do mercado". O cinema não está nem no poder nem no mercado. Está onde? Em Gramado há um ovo chocando. Cinema novo ou cinema ovo?
Sem a Phillips, não teria havido tropicalismo. Por que Gil, Caetano, Chico, Tom, Jorge Ben etc. são grandes artistas? Justamente porque transam com a TV, rádio, shows, mundo real enfim.
Lendo o livro de Alex Viany "Introdução ao Cinema Brasileiro", vemos que há um eterno pêndulo de ciclos, de ascensões e quedas, de um eterno retorno de derrotas e fracassos, todos gerados pela falta de mercado e de distribuição.
Isto criou no cineasta brasileiro um estranho amor masoquista pela derrota como uma forma de "heroísmo", coisa bem portuguesa essa. Há uma atração pelo "eterno" sofrimento. A idéia de cinema no país está ligada a um nobre pioneirismo endêmico. Sofrimento só enobrece masoquista.
Nos anos 70, conseguimos interromper este ciclo de dor e competir com os americanos, fazendo filmes bons de crítica e público mas, como só estávamos apoiados na agonia de um Estado getulista tardio, caiu tudo no chão. Não tínhamos produtores de cinema transando com o mercado, só "autores". E mesmo a década de 70 foi fruto de um casuísmo.
Quem inventou a Embrafilme foi João Paulo dos Reis Velloso que amava cinema. Já o flagrei às três da tarde na Cinemateca vendo "L'Atalante". Se ele não gostasse de cinema, não teria havido a produção estatal que gerou mais de cem filmes por ano. Durou até acabar mais este ciclo. Chega de casuísmo. As estruturas que se criarem para o cinema têm de ser duradouras. Do contrário, continuará um cabaré de ilusões.
A vontade de que o Estado proteja os gênios apenas encobre a vontade de que o Estado proteja os medíocres.
Talento é o resultado de uma luta entre o homem e seu mundo. Não é um cogumelozinho que tem de ser protegido para não se corromper ao contato com o ar sujo da realidade.
Eisenstein fez sua obra de gênio numa luta dialética contra Stalin. Depois foi pedir emprego em Hollywood. Eis o memorando de David Selznick para Irving Thalberg, chefão da Metro, depois de assistir o "Encouraçado Potenkim":
"Caro Thalberg, acabo de ver os filmes de Eisenstein. Ele é um gênio, talvez o maior gênio que surgiu no cinema. Portanto, achou que não devemos contratá-lo."
Perguntaram a Cole Porter de onde vinha a "fonte de sua inspiração"? "De um telefonema do meu produtor", respondeu o gênio, sentado dentro da indústria do "show business".
Jean-Luc Godard, um dos maiores do mundo, sabe que não teria filmado sem a política de apoio a produtores que a França cultivava. Disse de seu produtor George de Beauregard: "Ele é que é o poeta. Eu sou apenas o comerciante".
Ainda vou escrever um artigo sobre artista e masoquista.
Por enquanto, um trailer:
Quatro cineastas disputavam pra ver quem tinha sofrido mais.
Um: "Eu filmei na lama, contraí malária durante os seis meses na floresta. A equipe inteira pirou e eu terminei sozinho fazendo a claquete mergulhado até a cintura no pântano".
Dois: "Isso não é nada... eu terminei meu filme com a equipe passando fome e a gente pedia esmolas aos índios urubus!".
Três: "Herói sou eu! No meu filme, o porteiro não deixava entrar ninguém, porque a sessão só começava com mais de três espectadores. Nunca tinha sessão. Saiu de cartaz em uma semana".
Aí, o quarto cineasta falou: "Eu sou maior! Pois eu nem consegui filmar ainda!".
Todos o olharam com respeito e ele caiu de fronte alta, tropeçando no próprio manto de arminho.
A derrota absoluta enobrece o burro e lhe dá a sensação de ser um gênio incompreendido.
Só não ocorre ao gênio incompreendido que ele seja uma derrota absoluta.
O Estado tem de nos proteger contra a ocupação do país pelo cinema americano. Claro. Cota de tela inclusive. Óbvio. Sou até a favor de uma distribuidora estatal. Mas, proteger significa estimular uma produção privada nacional que crie competitividade entre os artistas, pois a falta de competitividade gera falta de talento.
O protecionismo estatal estraga os artistas e gera cineastas que fazem filmes ruins que não geram novos produtores e novos filmes.
Só os que temem a competição é que querem o "guichet" protecionista. Dançaria Fred Astaire como um deus se não houvesse competitividade? "Singing in the Rain" é um dos melhores filmes da história. E foi feito com o exclusivo objetivo de dar uma grana legal para o Arthur Freed e a Metro.
Assim como os empresários brasileiros acham os artistas um bando de imbecis sonhadores, os artistas brasileiros acham os empresários uns idiotas a serem enganados ou burgueses a serem predados "revolucionariamente". Ambos erram. Todo brasileiro é artista; precisamos de empresários da cultura.
As condições ficaram terríveis (todo mundo diz). Mas os filmes também ficaram (ninguém diz).
A idéia de que o sistema só castra é burra. O sistema castra e vivifica. Exemplo: O cinema de publicidade de São Paulo salvou o cinema do Brasil do arrasamento das condições técnicas (eu fui à luta e fiz 60 filmes nos últimos dois anos). Há ótimos diretores, fotógrafos, cenógrafos, estúdios etc. Por quê? Porque há mercado. Sem mercado não há talento.
Outro exemplo de que o mundo é complexo: o excesso de oferta de capital da Banca Internacional permitiu que durante os anos 60 e 70 o Estado brasileiro, que era um tomador compulsivo de empréstimos, tivesse sobras de caixa que permitiam financiar cultura, inclusive de esquerda.
Assim, filmes como os de Glauber, Nelson, Cacá e meus foram de certa forma "financiados" com as sobras do capital internacional que aqui chegou, gerando algumas obras-primas da nossa arte (excetuando meus trabalhos pois, como todos sabem, eu sou um camelo). Quando acabou a grana "imperialista" internacional, começou a decadência da consciência crítica nacional-popular. Zurich e Wall Street financiaram Lenine. Acreditem se quiserem.
Agora que a banca internacional fechou a torneira e o Estado populista faliu, só resta uma nova dialética com o mercado.
Não sou neoliberal, mas algum caldo de cultura tem de haver –ou com Stalin ou com Selznick. Agora, ovinhos fecundadinhos pelo governo paternal no ventrezinho de artistas sem talento, "never more", gente boa.
Precisamos de um banho anglo-saxão neste cascão português.

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