São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Estado de Direito à Brasileira

JACY DE SOUZA MENDONÇA

Foi muito sofrido para a humanidade ultrapassar a fase da história na qual a vontade do detentor do poder público tinha força de lei. Não poucos sofreram e até perderam a vida sob as injustiças que o arbítrio pode produzir.
Como legado da superação desse período, importantes princípios políticos e jurídicos foram descobertos pela inteligência humana e passaram a ser implantados nas sociedades. Aprendeu-se a colocar a lei em lugar da vontade do príncipe. Lei, no sentido formal, deliberação tomada por maioria, num grupo de representantes da sociedade, por ela eleitos para essa função.
Hoje se repete, em quase todas as Constituições do mundo, que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão "em virtude de lei". Ou seja, a vontade do príncipe ou do presidente, a vontade de ministros ou governadores, não cria obrigação para ninguém, nem quando revestida da forma de decreto, portaria ou resolução. Só a lei obriga.
Aprendeu-se também que o poder de administrar a sociedade precisa estar separado do poder de legislar. Quem administra não pode legislar, quem legisla não deve administrar. É a única forma de fazer com que a lei não fique submetida à vontade da autoridade, mas que a autoridade fique a ela submissa.
A lei é universal, gera direitos e obrigações para todos, mesmo para o presidente. Na maioria dos países politicamente desenvolvidos essa máxima é levada a tal ponto que nem se reconhece ao chefe do Poder Executivo a iniciativa legislativa, ou seja, a faculdade de encaminhar ao Parlamento projetos de lei.
No Brasil, nunca nos livramos do viés de nossos presidentes, ministros e autoridades em geral acreditarem ter poderes para impor sua vontade como se fossem fonte de lei, e já vivemos períodos em que o presidente da República assumia suas funções de administrar, legislar, sob a forma de atos institucionais ou decretos-lei.
Mas, pior que tudo isso, nosso regime constitucional, num lamentável retrocesso histórico, assegura ao presidente da República funções legislativas.
As medidas provisórias foram previstas pelo constituinte para atender a casos de relevância e urgência, conceitos de tal forma elásticos que neles tudo cabe. Deveriam perder a eficácia se não fossem convertidas em lei no prazo de 30 dias, mas a generosidade interpretativa possibilita sua reedição tantas vezes quantas agradar a vontade do presidente.
Os interesses políticos dos parlamentares, a incompetência de alguns, a irresponsabilidade e a preguiça de outros, tudo conspira para transformar o presidente da República no maior, senão o único verdadeiro legislador do país.
Já tivemos que assistir envergonhados espetáculos ridículos como o presidente ameaçando o Congresso com a edição ou reedição de medida provisória ou parlamentares pedindo licença ao Poder para modificar o texto de medida provisória. Triste recaída brasileira no regime arcaico e há muito superado pelos países civilizados de submissão da sociedade à vontade plenipotenciária do príncipe, com total inversão do sistema legislativo.
No regime da lei, o parlamento propõe, discute e aprova dispositivo legal para depois submetê-lo à aprovação ou rejeição do presidente; no regime das medidas provisórias, o presidente, sem discutir com ninguém, impõe um texto de lei e deixa ao Congresso a função de rejeitá-lo se puder.
Grave risco para o exercício das liberdades individuais, pois a amplitude das matérias disciplinadas pelo presidente é tal que, mesmo se um dia fossem rejeitadas pelo Congresso, muitas poderiam já ter causado danos jurídicos irreparáveis para os cidadãos.

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