São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Neutralidade do Judiciário é estranha à sua função atual

WALTER CENEVIVA

Neutralidade do Judiciário éestranha à sua função atual
Recebi do professor Tércio Sampaio Ferraz seu comentário, publicado na Revista da USP, sobre a neutralização do Judiciário. Para ele a neutralização é peça importante na caracterização do estado de direito burguês, suportada sobre a imparcialidade do juiz e o caráter apartidário no desempenho de suas funções.
O juiz neutro, para Tércio, representa papel instrumental compatível com a divisão dos poderes. Realiza a interpretação da lei, em posição dominante, imparcial e serena, mas distante das partes. A formação legislativa do direito, em face dos interesses concretos a serem julgados, não impressiona o magistrado neutro, que apenas aplica a lei.
A lição do professor paulista, um dos pensadores mais respeitáveis deste país, merece atenta meditação, quando a sociedade contemporânea pergunta insistentemente se o conformismo do Judiciário com sua "neutralidade" (vai entre aspas, porque o juiz digno de sua função não pode ficar alheio a seu entorno social) corresponde ao exercício adequado de suas atribuições, enquanto órgão de governo. Tércio Sampaio Ferraz lembra o outro lado da moeda, para mostrar que "a Justiça politizada arrisca-se a render-se ao marketing das opiniões, reduzindo o direito a elas, o que funciona bem no Legislativo mas que, no Judiciário, torna opaco o uso da força, conduzindo-a à banalidade e à trivialidade do jogo dos interesses".
A busca do melhor caminho não é fácil. Hoje o Estado passa por veloz transformação, na busca de realizar seus fins. O Estado nasceu separado da sociedade, mas entrosado com ela. Cresceu tanto, que passou a ser visto como adversário da sociedade e incapaz de resolver seus problemas. Por outro lado, a transformação tecnológica agregou novos condimentos ao chamado Estado de Bem-Estar Social. A eletrônica, a comunicação instantânea, o conhecimento dos fatos sociais, em todos os níveis –na forma e com as deficiências com que são divulgados– demonstraram, na segunda metade do século 20, a necessidade da desneutralização. Tércio diz que o juiz dos novos tempos "é chamado a exercer uma função socioterapêutica".
Mas, de novo, há duas faces na moeda da modernidade judicial. O juiz não neutro fica sob a visada direta do público. Lembra a missa antiga e a nova, depois do Concílio Vaticano. Antes havia mistério e solenidade. Agora, pode haver solenidade, mas certamente não há mistério. O juiz moderno, desprovido de mistério, humano e integrado ao corpo social, sofre maiores tensões no exercício de sua missão. Sua tarefa é difícil, até porque tendente a sofrer o chamado controle externo, que seria impensável até poucos anos atrás.
O conjunto dos homens-médios tem razões de insatisfação com o juiz-legalista (a expressão não tem conotação depreciativa, mas designa o chamado juiz-escravo-da-lei). A lei, na sua confusão, no excesso da normatividade mutante e camaleônica, impacta, com seu conteúdo de dúvida e de perplexidade. No direito estável dos tempos estáveis, o juiz-da-lei era aceitável. Não mais.
Tércio Sampaio Ferraz anota, com lucidez, que a politização da Justiça "é diferente da politização do Legislativo ou do Executivo. Diante de um Judiciário neutralizado, aqueles dois poderes produzem normas, mas não criam o direito". Quem concretiza o direito, em cada decisão, é o juiz. Para concretizá-lo, em termos atuais, não pode ofender a lei. Mas, por certo, não pode ser neutro.

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