São Paulo, terça-feira, 30 de agosto de 1994
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'Cultura da certeza' tem velocidade máxima

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há filmes masculinos e filmes femininos. "Morango e Chocolate" é mulher, claro. "Velocidade Máxima" (Speed) é filme de "macho", claro também. Os dois são ótimos pretextos para se comparar os dois sexos no cinema. "Morango" defende uma delicadeza perdida, as paixões simples, os vestígios da beleza (sem ter o formalismo superficial de obras "belas" como os abacaxis de James Ivory ou o belo verniz de "O Piano").
"Velocidade Máxima" é o retrato da perversão mais moderna da cultura dos Estados Unidos, que, muito mais que a "cultura da reclamação" de Robert Hughes, é o país da "cultura da certeza". A América quer certezas, princípio, meio e fim, quer clareza, quer que tudo fique iluminado pela luz dos supermercados.
O delírio da eficiência e o orgasmo mítico do controle vão nos levar a alguma catástrofe que não conhecemos. Talvez a catástrofe da previsibilidade sem erro. Talvez o inferno do infalível. Só temos a ameaça da Aids e outras pestes que surgirão, do "serial killer" ou do asteróide. Há miséria no mundo, tudo bem. No filme americano há perfeição.
Não quer dizer que "Speed" seja ruim. Não. É do cacete, é de tirar o fôlego, é o máximo para quem quer cair numa montanha americana de caniôns luminosos e de vôos de suspense.
"Speed" é de uma eficácia que apavora. Por que tanta eficiência fílmica? Por que tanta perfeição no roteiro? Os roteiros americanos estão cada vez mais absolutos, feitos em computador, de modo a não deixar nenhum respiro para o espectador. É necessário encher cada buraco para que nada se infiltre, nada empane a atenção absoluta. Claro que não se trata de arte.
A arte pressupõe uma imperfeição qualquer, uma fragilidade que se evoca, mesmo na beleza das estátuas perfeitas. A arte fala da morte ou do medo dela, a arte é outra coisa e não este filme. Mas não o critico do ponto de vista da nostalgia de uma "arte perdida" ou de um cinema "que já houve". Não adianta mais chorar. O pior já aconteceu. Temos de tirar da cabeça a idéia romântica de uma sociedade musicada por Mozarts, descrita por Flauberts e filmada por Antonionis.
Temos de tirar da cabeça que um dia veremos os operários do metrô correndo ao final do dia, tomando banho no chuveiro da obra e dizendo: "Vamos logo, Manelão, que a abertura do 'Lohengrin' já deve estar começando..."
Mas "Speed" e outros filmes de ação já são outra coisa, algo próximo da superpropaganda de controle, algo perto do eletrochoque, da anestesia, algo perto da robotização dos operários, algo perto da "clonificação" de humanos, algo perto da morte e da Disneylândia, dos sonhos programados. Há que se entender "Speed" à luz do que está "em volta" do roteiro, da estorinha.
Aliás, amei o filme. Vejam como eu sou contraditório: critico algo que amo. Um dia falarei disso para os leitores que me odeiam quando eu toco nas "unthinkable ideas" (as "idéias impensáveis" de Allan Bloom).
O problema destes filmes está em volta. Neles, os policiais são os heróis. São heróis da supereficiência, além da coragem; são mais que isso: são superamericanos, heróis do "do-it-yourself", hipermecânicos, mega-paus-para-toda-a-obra, cuja bíblia seria uma transcendental "Popular Mechanics".
Em "Speed", um psicopata ameaça a sociedade. Só os psicopatas ameaçam a paz social, hoje. Morreram os comunas, morreram os hippies, morreram os "beats"; só ficaram os terroristas loucos que botam bombas delirantes em aviões e "trade-centers".
Não por acaso, o maluco que põe a bomba no ônibus cheio de inocentes de "Speed" não é outro senão Dennis Hopper, o herói inconformista de "Sem Destino", o "cult" dos anos 60.
Antigamente, sofríamos no enredo, esperando que os casais se dessem bem no final. Hoje, sabemos que vai acabar bem, mas nos interessam mais os infernos que eles vão atravessar para chegar até o final fatalmente bom. Interessa analisar estes infernos, que mudam enquanto Aristóteles fica intacto (há 2.000 anos). A catarse chegará, mas antes temos amputações, temos "bazookaas" estourando peitos, bombas, perigos, e vemos que, mais importantes que as personagens, são as Coisas em volta.
Nestes filmes, o mundo de objetos americano, as coisas fabricadas que compõem o mundo americano, o elevador, os aviões, os carros, os viadutos, a velocidade, as armas, as bombas, os mecanismos informáticos, os "gadgets", tudo é mais importante que o humano. As coisas são as personagens, o décor é tudo, numa gigantesca e impressionante propaganda da tecnologia rápida, da veloz luz dos aparelhos.
A propaganda embutida nos filmes americanos é mais forte que qualquer realismo stalinista. Só que hoje em dia a exibição da América vem ambígua. Há uma dupla exibição de progresso misturada com um desejo de autodestruição. A América é retorcida, liquidificada, espatifada, com amor e ódio. Há nos filmes um ódio inconfesso contra o pesadelo de ar-condicionado dos EUA, há um desejo misturado de "show-room" com ruína, de desastre com elogio de qualidade.
O próprio filme, ridículo de estória, com personagens bobos e esquemáticos, é um show de competência, um espantoso comercial da eficiência americana em controlar os dissidentes, em elidir a morte (banalizando-a) e de garantir um final "reassegurador". A gente se diverte vendo o filme, mas dá para sentir que estamos sendo cooptados para algum programa de difusão política que nem eles sabem qual é. São "agit-prop" sem "comitê central". Há uma ideologia sem teóricos.
Acho que é o inconsciente da "cultura da certeza". Esta cultura da certeza inclui até o que Robert Hughes analisa, pois até o desejo de justiça politicamente correta busca uma previsibilidade. É preciso que até os "homeless", os negros, os viados, todos estejam corretamente catalogados numa certeza, num escaninho bem etiquetado e claro. Os arquivos tem de estar perfeitos, eficientes.
O guardião da América não é mais o Super-Homem, mas os competentes oficiais que garantem uma caretice pós-pós contra os Dennis Hoppers, com a ajuda da informática e da rapidez. A ideologia está no décor. Mesmo que alguém fizesse ali naqueles cenários hiper-hiper um discurso pró-Fidel Castro, por exemplo, o décor ganharia em significação. Os signos falam mais que os símbolos, as coisas falam mais que os homens.
Se alguma coisa Marx acertou em cheio foi no conceito de fetichismo das mercadorias. Só o psicopata pode criar confusão no "fim da história" liberal de direita. Se ele for contido, tudo correrá bem para Fukuyama. A direita americana conseguiu transformar todo conceito de revolução numa forma de distúrbio mental.
Toda herança de liberdade virou o Woodstock de plástico falso que vimos há pouco. Parecia um museu de cera dançando rock. Hoje, não há mais empregos suficientes para permitir o luxo da transgressão. Hippie hoje é mendigo, "beatnick" é "homeless". E só os psicopatas atrapalham o bom funcionamento de uma sociedade comandada pelo mercado. A cultura da certeza é a busca de uma engenharia genética do destino.

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