São Paulo, quarta-feira, 31 de agosto de 1994
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Quão real é o "Real"?

PAUL SINGER

Não há dúvida que o Plano Real está em sua melhor fase; depois do rebote inflacionário de junho-julho, os preços ficaram muito acima do poder de compra da maioria dos consumidores, o que força sua queda; ao mesmo tempo, a taxa nominal de juros caiu dramaticamente, viabilizando compras a prestações que antes eram impossíveis.
Portanto, gozamos de uma minideflação –tênue, mas deliciosa para quem era massacrado por inflações mensais de 35%, 45% e até 50%– e ao mesmo tempo de uma recuperação do consumo, que afasta pelo menos momentaneamente o espectro da recessão. Mas 50 dias de relativa "estabilidade" são muito pouco para uma sociedade cujos hábitos de pensamento e de ação foram condicionados por mais de 50 anos de inflação.
Precisamos de uma perspectiva de tempo maior para aquilatar em que medida é real o Plano Real, no sentido de realmente marcar a ruptura com todo esse passado e o início de uma era de estabilidade de valores nominais na economia brasileira.
As pressões inflacionárias não resolvidas na fase URV do plano estão se acumulando no horizonte e serão desencadeadas nas próximas semanas e meses.
A Petrobrás por exemplo já está reclamando um aumento de 5% dos preços dos combustíveis, por conta do aumento do preço internacional do petróleo. Os donos das escolas privadas se recusam a cobrar as taxas de acordo com o que determina a MP do governo.
Bancários, petroleiros, rodoviários, químicos, aeroviários e outras categorias de trabalhadores têm data-base em setembro e vão lutar por aumentos substanciais, coagidos a isso pelo dispositivo do Plano Real que proíbe qualquer correção monetária contratual em prazo inferior a um ano, impedindo que seus salários possam ser reajustados pelos próximos 12 meses.
E o mesmo Plano Real não obsta que os aumentos salariais concedidos sejam imediatamente repassados aos preços. E os prestadores autônomos de serviços –de tintureiros a médicos e encanadores– que cobram seus salários diretamente da clientela já estão reajustando seus preços, possivelmente motivados pelo encarecimento de tudo que compram.
O Plano Real só cairá na real quando estas pressões inflacionárias (e outras ainda no momento imperceptíveis) forem equacionadas. Para tanto, há dois métodos possíveis.
Um, o convencional, é o que o Plano Real contempla e tem como instrumentos essenciais a importação à taxa cambial fixa e baixa e quase sem tarifa aduaneira de mercadorias, tornando impossível pela competição os produtores e comerciantes brasileiros aumentarem seus preços; e a redução da demanda por bens de consumo e de investimento, mediante juros altos e corte do gasto público, impedindo as remarcações de preços pelo excesso de oferta suscitado.
O outro, heterodoxo e inconvencional, consiste em controlar as pressões inflacionárias em sua origem, nas cadeias produtivas, mediante a fixação negociada entre todos os setores participantes de tetos para os aumentos de valores, sejam estes preços ou salários.
Cada um destes métodos corresponde a visões diferentes da economia de mercado e tem efeitos diferentes. Caberá aos brasileiros, em 3 de outubro próximo, optar entre um e outro.
O método convencional tem sido aplicado nas estabilizações que seguem o figurino liberal e se fundamenta na convicção de que os mercados tendem espontaneamente ao equilíbrio de pleno emprego e que portanto ao aumento das importações corresponderá um aumento de exportações e a queda da demanda será respondida por reduções de preços que reestabelecerão o equilíbrio entre oferta e procura. Na prática sabemos que não é assim, a queda da demanda joga a economia em recessão, fazendo com que as empresas em mercados competitivos (geralmente pequenas e médias) sejam forçadas a reduzir seus preços, mas não as empresas oligopólicas, que pelo contrário os elevam porque seus custos unitários aumentam com a redução da escala de produção. As empresas mais fracas quebram, todas demitem parte de seus empregados, o que reduz ainda mais a procura.
Nestas condições, a concorrência dos produtos importados é particularmente letal: muitas firmas não resistem, fecham ou se tornam importadoras, num fenômeno chamado "desindustrialização". Nestas condições, manter a estabilidade é possível, mas custa um preço econômico e social elevado.
O método da negociação coletiva simultânea de preços e salários por cadeia produtiva tem por finalidade exatamente evitar este custo, compatibilizando estabilização com crescimento do consumo, da produção e do emprego e com redistribuição da renda.
Ele se baseia na convicção de que mercados oligopólicos, isto é, dominados por poucas empresas grandes que compram de pequenos fornecedores e vendem a varejistas que revendem em mercados competitivos, se equilibram ajustando quantidades mais do que preços.
Em outras palavras, em mercados oligopólicos, as empresas dominantes antes reduzem a quantidade do que compram, produzem e vendem do que os preços que cobram. Por isso, o método convencional acarreta o empobrecimento de amplos setores da sociedade, vitimando sobretudo os trabalhadores assalariados e as empresas médias e pequenas para conter as pressões inflacionárias.
A negociação simultânea de preços e salários é praticamente possível, como mostram diversos acordos alcançados em câmaras setoriais, no Brasil, nos últimos anos. Seus resultados dependem do empenho do governo em promovê-la e da disposição das entidades empresariais e de trabalhadores em revelar suas planilhas de custos e de adiar reivindicações até o momento em que as condições concretas permitam atendê-las sem trazer de volta espirais inflacionárias.
A estabilização presente, trazida pela atual fase do Plano Real, oferece uma grande oportunidade de mediante negociações coletivas consolidá-la, sem expor o Brasil aos riscos da recessão com desindustrialização.
A candidatura de Lula à Presidência está comprometida com este método. É falso, portanto, que Lula eleito abandonaria ou revogaria o Plano Real e seus efeitos.
As críticas ao plano, feitas por Lula e sua equipe, visavam apontar a sua falha essencial –a de depender unicamente de medidas recessivas e comerciais para consolidar a estabilidade.
A sua proposta objetiva é tornar realidade as promessas do Plano Real, que até o momento ainda paira nas nuvens de um estado de graça que em breve vai acabar.

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