São Paulo, sexta-feira, 2 de setembro de 1994
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O político e o intelectual

JOSÉ SARNEY

Há no mundo latino uma tendência e mesmo uma sensação de necessidade de que o político, o homem de Estado, tem que ter uma boa formação intelectual. E mais: se puder ser um intelectual, um homem de letras e de cultura, melhor ainda. Já os saxônicos têm a visão de que é da própria natureza do político ser um homem pragmático, de que a realidade, o saber lidar com os fatos é a grande virtude de um homem público.
Churchill pode ser considerado uma exceção, mas a verdade é que, em sua personalidade, o homem de ação era um prolongamento de sua atividade intelectual. Quem lê sob esse ângulo suas memórias tem a sensação de que ele foi sempre o escritor que se tornou político para poder escrever e pensar tudo o que fez.
Nos Estados Unidos, ser intelectual é uma qualidade que barra qualquer atividade com êxito na política. A exceção foi Woodrow Wilson, o mais culto dos presidentes americanos, que chegou a Genebra com a cabeça cheia de teorias, quando propôs a Liga das Nações. O sucesso nos negócios, o senso prático, a objetividade, a energia de vencer obstáculos é o que seduz para a vida pública. No fundo, é uma visão do sucesso pessoal transposto para o sucesso público.
A França jamais pensaria um presidente que não tivesse uma vocação para as letras e para as artes, voltado para as coisas do espírito. O presidente tem que ser um pensador político, um intelectual da política. Não vamos nos perder em exemplos históricos. Vejam-se, nos tempos modernos, Miterrand, De Gaulle, Barre, Pompidou, Giscard, Rocard e outros.
Aqui, no continente, Gallegos, o grande novelista que foi presidente da Venezuela, Betancour na Colômbia, Alfonsin e Sanguinetti, todos se orgulham de serem homens de letras e pensadores. Vargas Llosa tentou a Presidência do Peru. No Brasil, na República Velha, o brilho intelectual era virtude a ser medida nas escolhas para dirigir a nação. A afronta do marechal Hermes e de Venceslau Brás foi paga com uma crítica contundente e um anedotário que, até hoje, marcam suas personalidades e governos.
Getúlio Vargas tinha esse sentimento da Velha República. E teve a vaidade de, sendo o antiintelectual pragmático e matreiro, cercar-se de intelectuais e desejar, como uma compulsão, entrar de porta adentro na Academia Brasileira de Letras, sem um único livro. Chegou mesmo a provocar a reforma dos estatutos da Casa, permitindo candidatos sem postulação e, depois de sua entrada, voltou tudo a ser como era antes. Alceu Amoroso Lima, durante o tempo em que Getúlio foi acadêmico, ali não compareceu, como protesto.
A verdade é que o político é o homem dos fatos, do pragmatismo, do possível. O intelectual é o homem da justiça absoluta. Essa luta é uma luta interna, em todo intelectual que lida com a política. No fundo, ele cria uma convivência difícil, em que o casal não é feliz e, submisso ao matrimônio, vive de amarguras e rupturas, numa contradição irremovível. Isto, sem falar no alto preço que paga, da patrulha política e da patrulha intelectual. No fundo, é uma vida que não se realiza, porque é impossível levar a literatura para a política e, um crime, a política para a literatura.

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