São Paulo, sexta-feira, 2 de setembro de 1994
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O jardim antropológico de neolíticos

HÉLIO JAGUARIBE

Declarações minhas a respeito do índio brasileiro, em resposta a uma pergunta que me foi formulada por um dos assistentes à conferência que pronunciei no Estado-Maior do Exército, no dia 29 de agosto, sob o título "A Defesa Nacional na Virada do Século", no âmbito de um seminário sobre a política educacional conveniente ao militar brasileiro para princípios do século entrante, suscitou de parte do sr. Marcos Terena, fundador da União das Nações Indígenas, um tão incompetente quanto desinformado artigo, que publicou na página 1-3 da edição de 31 de agosto da Folha.
Importaria, inicialmente, situar o contexto em que comentei aspectos da questão indígena no Brasil. Tratava-se de uma análise prospectiva das mais prováveis tendências evolutivas do sistema internacional, no curso dos próximos 10 a 20 anos e das mais prováveis tendências, nesse mesmo período, em nosso país, como condição para se avaliar as prováveis tarefas que nesse contexto caberiam a nossas Forças Armas e, decorrentemente, o tipo de educação mais apropriada para o militar brasileiro dessa vindoura época.
Na parte do seminário destinada a perguntas dos assistentes, um destes me formulou uma questão, completamente fora do âmbito da matéria em discussão, salientando a preocupação que lhe causavam críticas norte-americanas a nossa política indigenista e o fato de nossos índios não estarem recebendo adequada assistência da União. Foi em resposta a essa questão que fiz breves comentários sobre alguns aspectos da questão indígena no Brasil.
Observei, em primeiro lugar, que os Estados Unidos não têm nenhuma qualificação para criticar a política indigenista do Brasil, pois naquele país os índios foram massacrados e não, principalmente, por colonos lhes disputando terras e sim pelas forças do Exército americano. Daí haver surgido naquela época o ditado "the good indian is a dead indian".
Contrastando com essa política de genocídio, no Brasil, sob a liderança do general Rondon, atuou uma heróica missão de militares dedicados a ajudar a integração do índio na comunidade brasileira, sem forçá-la, mas por induzimentos e assistência, enfrentando, sem disparar um tiro, as flechas de nossos silvícolas, sob o lema "morrer, se necessário; matar, nunca".
Conheço de perto e desde minha infância a extraordinária gesta do general Rondon porque meu falecido pai, o general Jaguaribe, então capitão, era membro da comissão Rondon, como seu geógrafo e cartógrafo e foi o mais chegado amigo daquele grande brasileiro.
O segundo aspecto que comentei, naquelas minhas considerações sobre o índio brasileiro, se referiu ao fato de que a insuficiente assistência dada presentemente ao índio decorre da terrível crise financeira por que passa atualmente a União, por ter perdido quase metade de sua arrecadação tributária, conservando a totalidade de seus encargos.
Não somente a assistência ao índio, mas, igualmente, os serviços médicos, a Previdência Social e diversos outros serviços essenciais da União estão em situação lamentável, por absoluta falta de recursos, o que só poderá ser remediado com uma ampla revisão constitucional, que o Congresso deixou de fazer na oportunidade que lhe fora conferida pela Constituição.
À margem dessas deficiências, observei como era deplorável o fato de que, entre as muitas dificuldades que ora experimenta o povo brasileiro, determinados setores da opinião pública, no exterior e no próprio país, fiquem sensibilizados com a condição de nossos 200 mil silvícolas e pouco se importem com a condição, muito mais grave, de 30 milhões de favelados.
Comentei, finalmente, um aspecto da questão indígena que suscitou a incompetente reação do sr. Terena e de alguns outros setores do ecologismo fácil: o destino histórico do índio brasileiro é deixar de ser índio e se tornar um cidadão brasileiro. O Brasil não terá índios no final do século 21 –não, como foi dito, no ano 2000, que está na iminência de ocorrer, mas seguramente até fins do próximo século. E por que isso?
Pela razão muito simples que consiste no fato de o índio brasileiro não ser distinto das demais comunidades primitivas que existiram no mundo. A história não é outra coisa senão um processo civilizatório, que conduz o homem, por conta própria ou por difusão da cultura, a passar do paleolítico ao neolítico e do neolítico a um estágio civilizado.
Esse trânsito, para dar um elucidativo exemplo, foi percorrido pelas comunidades paleolíticas que habitavam, antes do ano 6000 a.C. os platôs do Alto Egito e, milênios mais tarde, pelas comunidades neolíticas de Merimde e outras regiões do Delta, formando essa coisa extraordinária que veio a ser a civilização egípcia.
Os índios brasileiros, alguns ainda no paleolítico, perdidos nas profundidades da selva amazônica, outros no neolítico, em áreas conhecidas, a maior parte dos quais hoje habitando reservas indígenas que lhes foram delimitadas pela União, para sua gradual e voluntária incorporação à civilização brasileira, não são diferentes dos paleolíticos e neolíticos que vieram a formar o Egito.
O que os distingue de muitos exemplos progressos é o fato de serem habitantes de uma área já civilizada, o que os impedirá –independentemente do que desejem antropólogos sem competência histórica– de vir a formar uma civilização própria e portanto uma nação própria, no âmbito da comunidade internacional.
O destino histórico dos índios brasileiros, como muito bem foi compreendido pelo general Rondon, é o de se tornarem cidadãos brasileiros. Para isto, mais uma vez como foi preconizado por Rondon, o Estado brasileiro, ou seja, a União, tem de lhes proporcionar assistência, em tudo que venha ao encontro das carências de nossos silvícolas, particularmente em educação.
Não se trata de obrigá-los a ingressar na nossa cultura. Trata-se de lhes facilitar um ingresso que eles próprios desejam. Salvo, evidentemente, as distorções que resultam da combinação da incompetência histórica de alguns com a malícia econômica e política de determinados setores, muitos dos quais estrangeiros.
Essas distorções conduzem à formação do "índio eletrônico", que vive, nababescamente, em reservas cujos imensos recursos naturais concede, mediante gordas compensações para os chefes tribais, à exploração de aventureiros do país e do exterior e cujo voto canaliza para os setores políticos que defendem o congelamento dos silvícolas em jardins antropológicos de neolíticos.
Permite-se-me reiterar que essa prática é criminosamente cruel e hipócrita.

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