São Paulo, quarta-feira, 7 de setembro de 1994
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O pesadelo do salário zero

JOSÉ SERRA

"O ofício, é o ofício que assim te põe no meio de nós todos, vagabundo entre dois horários". (Carlos Drummond de Andrade, "Canto ao homem do povo Charlie Chaplin")
É duro para muitos trabalhadores esforçarem-se durante um mês inteiro e, no final, ganharem tão pouco que não conseguem atender as necessidades básicas da família. Muito mais doloroso, porém, é alguém ser demitido e não receber salário algum.
O trabalhador de salário zero ainda pode valer-se, nos meses iniciais, do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e do seguro-desemprego. Mas, se não consegue rapidamente uma nova colocação, vê-se forçado a vender uma parte de seu modesto patrimônio, aceitar biscates mal remunerados e finalmente cair na dependência constrangedora de parentes e amigos.
Os efeitos sociais da desocupação são bem conhecidos. Uma onda de desemprego aberto, encolhendo o mercado de consumo, reforça a tendência contracionista da economia. Com as elevadas taxas de desocupação total e parcial, os problemas sociais se agravam. E, se a situação desfavorável do mercado de trabalho dificulta a organização de greves e manifestações, por outro lado estimula a ocorrência de atos espontâneos e desesperados de protesto, como os saques e o aumento da delinquência, que acentuam a instabilidade política.
Os efeitos psicológicos do desemprego são menos estudados, mas igualmente devastadores. O trabalho é inerente à condição humana. Através dele, o ser humano afirma e desenvolve sua subjetividade criadora, fortalece os vínculos com a sociedade em que vive, sente-se útil e participante. Privado da possibilidade de trabalhar e contribuir, o ser humano se degrada, perde a auto-estima e a esperança, fenece.
Não surpreende, portanto, que o desemprego seja o problema que mais aflige os brasileiros atualmente, segundo revelam as pesquisas de opinião. Mas, por isso mesmo, é fácil que se propaguem soluções demagógicas ou ingênuas. Os programas emergenciais de ajuda, por exemplo, por mais indispensáveis que sejam, não conseguem suprir as necessidades de todos os desempregados, quando a desocupação se torna generalizada e prolongada. Também não é realista esperar que as empresas contratem funcionários desnecessários apenas para atender aos apelos de campanhas generosas, principalmente no atual período de concorrência acirrada e reestruturação administrativa e tecnológica. E seria tolo imitar os movimentos ludistas do passado e tentar impedir o progresso tecnológico, quando do incremento da produção e da produtividade é que podem surgir os recursos adicionais e as novas necessidades e ocupações que permitirão encontrar soluções mais efetivas e duradouras para reciclar e reaproveitar os trabalhadores desempregados. Foi o que aconteceu na transição, sem dúvida dolorosa, das sociedades agrárias para as sociedades industriais.
O desemprego que angustia os brasileiros não é, portanto, uma doença simples, que tenha uma causa única. Resulta, ao contrário, de um círculo vicioso de fatores que se reforçam mutuamente: a estagnação econômica, a modernização tecnológica e administrativa, a baixa qualificação da força de trabalho, a estrutura tributária que discrimina a produção doméstica e o atraso de grandes áreas rurais. Para derrubá-lo, é preciso um programa abrangente, que dê conta das diferentes modalidades e dos diversos fatores de subaproveitamento de nossa força de trabalho. Destaco algumas diretrizes que devem integrar esse programa.
1) Para gerar empregos, é preciso, antes de mais nada, crescer. E para voltar a crescer, existe uma precondição básica: derrotar a superinflação e estabilizar o valor da moeda e as regras de funcionamento da economia. Reduzidas significativamente as taxas de inflação e de juros, o espaço se abrirá para que sejam investidos em atividades produtivas os capitais vindos do exterior e os recursos imobilizados em aplicações financeiras.
É necessário deixar bem claro que, sem a estabilização da economia e a retomada do crescimento sustentado, é inviável qualquer combate eficiente ao desemprego e qualquer promessa de redistribuição de renda. É falsa e contraditória, portanto, a postura das forças políticas que lamentam o desemprego, mas se opõem ao Plano Real, sem contrapropor nenhuma alternativa coerente de estabilização.
2) Além do desemprego cíclico, decorrente das oscilações periódicas no nível de atividade econômica, o Brasil sempre penou com um elevado desemprego estrutural ou crônico, resultante de fatores mais gerais de funcionamento de sua economia. Justamente por isso, as estatísticas do país não retratam com fidelidade as altas taxas de desemprego. Grande parte dessa doença econômico-social é disfarçada por ocupações eventuais ou de baixíssima produtividade, ou escondida pela desistência de procura de um novo posto de trabalho. Neste caso, o desemprego é considerado voluntário e desaparece dos registros estatísticos.
Mais recentemente, com o desenvolvimento da terceira revolução industrial e a remodelação tecnológica e administrativa das empresas, acrescentou-se nova modalidade de desemprego estrutural, resultante da extinção de setores inteiros das unidades fabris e de serviços, ao lado do aparecimento de novas ocupações e novas oportunidades de trabalho, emergindo um novo tipo de desemprego friccional, em que as pessoas que desejam trabalhar não têm as qualificações requeridas para ocupar as vagas disponíveis nas empresas, ou para aproveitar as novas oportunidades de trabalho autônomo e bem-remunerado.
Por isso, não basta a retomada do crescimento. Como já se alertou tantas vezes, no mundo de hoje a mais-valia do trabalho físico está sendo suplantada pela mais-valia do conhecimento científico e tecnológico. Neste sentido, impõe-se uma verdadeira revolução em matéria de educação e treinamento de trabalhadores no Brasil.
Um ensino básico e de boa qualidade deve ser universalizado, principalmente através da recuperação da devastada rede de escolas públicas de 1º e 2º graus. As escolas técnicas federais e estaduais e o atual sistema Senai-Senac devem ser remodelados e integrados a um sistema de formação técnica e treinamento profissional atualizado.
Mediante bolsas de estudo e de manutenção, acompanhadas de critérios de aproveitamento, deve ser alongado o período de escolaridade das crianças e adolescentes pobres, elevando seu nível técnico-cultural, diminuindo a marginalização nas ruas e arrefecendo a pressão prematura que eles exercem sobre o mercado de trabalho. Deve ser ampliada também a oferta de escolas e cursos noturnos.
Paralelamente, o Programa de Seguro-Desemprego deve ser transformado num verdadeiro sistema público de apoio ao emprego, incluindo, além da assistência financeira temporária ao desempregado, a reciclagem profissional e a ajuda na obtenção de novo posto de trabalho.
É evidente que um trabalhador atualizado e melhor qualificado tem mais possibilidades de manter-se em seu emprego ou de conseguir nova colocação ou mesmo de montar sua própria microempresa.
A proposta é audaciosa, mas, remanejando uma parcela dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador e do salário-educação, utilizando criativamente os recursos da dívida ativa da União e uma parte das receitas obtidas com a venda de empresas estatais e incorporando Estados, municípios e entidades empresariais e sindicais ao esforço, será possível levar esse conjunto de medidas a bom termo.
3) Na agricultura, duas linhas de atuação precisam ser aprofundadas. A primeira é ampliar a irrigação. Hoje, somente 6% do solo potencialmente irrigável recebem esse tratamento, que, em média, multiplica por 5,5 os empregados por unidade de superfície.
A segunda meta é realizar um programa de assentamentos rurais criterioso, em áreas bem selecionadas, inclusive irrigadas, com apoio creditício, assistência técnica e a indispensável infra-estrutura de estradas, escolas e postos de saúde, para que, além da retenção de trabalhadores no campo, haja uma efetiva elevação da produção agrícola e uma melhoria significativa no padrão de vida dos pequenos lavradores assentados e de suas famílias.
Lembro ainda a possibilidade da criação de linhas de "crédito fundiário" para a compra de terra por pequenos agricultores, melhorando três condições: da moradia, da produção e da fixação do homem no campo.
4) Há que enfrentar também a intrincada tarefa de aliviar os encargos sobre a folha de salários das empresas. Mesmo que seu impacto na ampliação da oferta de emprego seja modesto, a redução dos encargos poderá ser importante para desestimular o alastramento do trabalho informal e sem proteção jurídica.
5) Com a retomada do crescimento sustentado da economia e o incremento da produtividade do trabalho, será preciso que, através de mudanças na legislação e de contratos coletivos livremente negociados entre sindicatos trabalhistas e patronais, se inicie também a redução da jornada máxima de trabalho, onde for possível, para que se abram oportunidades de admissão de novos trabalhadores.
O flagelo do desemprego é penoso demais. Superando a denúncia fácil, é urgente que se debata com seriedade um programa de combate ao desemprego, consistente e exequível, para que não continuem a ser degradadas tantas vidas e desperdiçadas tantas capacidades potencialmente valiosas para o desenvolvimento do país.

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