São Paulo, quinta-feira, 8 de setembro de 1994
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Hipócritas

OTÁVIO FRIAS FILHO

Otavio Frias Filho
O caso Ricupero deflagrou uma onda confessional. Nos comentários, nos artigos, nas declarações tudo o que se viu foram mea culpas, como se um incêndio moral tivesse sido causado pelo abismo entre a compunção ostentada em público e o pérfido amoralismo flagrado em particular.
O caso expõe um problema tão profundo que, ao reagir a ele, qualquer que seja a reação, já estamos confessando nossas culpas por tabela e sendo ricuperos nós mesmos.
O ex-ministro faz parte de uma irmandade espiritual onde figuram também, entre outros, Marcílio Marques Moreira, Célio Borja, Francisco Rezek, Sérgio Rouanet, Celso Lafer.
Alguém os definiu como "papa-hóstias". A definição é boa não só pela tartufice obsequiosa da sua atitude, como porque parecem ser, mais do que cristãos, católicos, mais do que católicos, quase papistas na eterna disposição de servir ao poder temporal.
Como Talleyrand, alegam servir ao país, não a regimes. E sempre me pareceram, de fato, súditos demais e cidadãos de menos.
A penúltima jogada inglória da turma, antes do acidente Ricupero, foi emprestarem seus punhos de renda e sua aura de respeitabilidade à tarefa calhorda de prolongar o agonizante governo Collor.
Educado no hábito de guardar segredos, representante de um grupo triplamente hipócrita pela carolice, pelo pedantismo intelectual e pelo mundanismo diplomático, de repente este homem, seduzido talvez pela vertigem do confessionário diante de milhões, "resolve" purgar seus delitos em plena TV.
Extremo narcisismo e máxima humilhação, crime e castigo. E no entanto somos todos como ele; em nossas respectivas esferas de atuação, pensamos o que não dizemos e murmuramos o que não pode ser revelado.
Uma certa dose de hipocrisia é aliás essencial para assegurar a fluidez da vida em sociedade e evitar que a convivência decaia num estado de agressão generalizada.
Somos hipócritas por costume, por sadismo, por medo ou por preguiça, para prevenir situações embaraçosas, para proteger terceiros, para preservar a nossa vaidade e a dos outros.
A essa lista de razões tradicionais devemos juntar, agora, a suscetibilidade das mulheres, das minorias, de qualquer grupo que reivindique alguma identidade própria, de modo que quanto mais corretos, mais falsos somos, quanto mais civilizados, mais hipócritas.
O holocausto de Ricupero, embora cruel, tem uma justificativa política. É que na esfera pública somos obrigados a impor um parâmetro de correção que sabemos inatingível por qualquer um, "santo" ou "canalha".
Não poderia ser de outra forma, se acreditamos que a política é o meio pelo qual a sociedade se aperfeiçoa. Pena que o aperfeiçoamento seja sempre traiçoeiro.
Pois quando parece haver progresso, não foram necessariamente as pessoas, mas a hipocrisia quem melhorou, cumprindo destino inverso ao do provérbio de La Rochefoucauld para ser, enfim, homenagem que a virtude presta ao vício.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.

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