São Paulo, quinta-feira, 8 de setembro de 1994
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"Hommage du vice..."

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

Dizem os franceses que a hipocrisia é a homenagem do vício à virtude. E como é vicioso o empenho de tantos em vilipendiar Ricupero, esse homem, exemplar em mais de um aspecto, que teve a dignidade de se penitenciar publicamente.
Não deixa de me surpreender a leviandade e o prazer com que se julga, condena, se esmiuçam a intimidade e as intenções recônditas de um homem, numa espécie de psicanálise selvagem e feroz. E inútil: sinto decepcionar os que esperam chegar ao poder por meio do erro dos outros (inclusive os "amigos", que a pretexto de defender o futuro do país, são mais impiedosos na condenação do que os adversários).
O povo julga pelos resultados e pela aparência. E as primeiras pesquisas já divulgadas comprovam que, quanto aos resultados, Ricupero já foi absolvido e, quanto às aparências, o julgamento popular está dividido.
A questão ética envolvendo a demissão de Ricupero só deveria ser avaliada publicamente do ponto de vista da moral pública. O aspecto individual só a ele diz respeito.
Conheço o embaixador Ricupero apenas de ocasiões formais e como homem público. Entretanto, compartilhamos uma formação católica, embora eu já não compartilhe a fé. Por isso sei que sua religião é uma religião de pecadores, não de santos e heróis.
Ela nada tem a ver com a intolerância fanática em que se transformou um certo catolicismo de "santos", onde não há lugar para a compaixão pelos pecadores, nem para os ricos, nem para os que pensam diferentemente.
Quanto à ética da responsabilidade, admitindo ter posto em risco a autoridade pública e a estabilidade das instituições, e avaliando que sua permanência no governo poderia agravar esse risco, e independentemente de qualquer consideração de "culpa", Ricupero agiu prontamente, afastando-se do cargo.
Não seria digno de um homem público alegar boas intenções, ou acusar golpes sujos de adversários, ou incompetência de subordinados, para com isso manter uma situação de risco para as instituições.
Desse ponto de vista, o incidente político reside mais no que o ex-ministro disse do que no que fez. Como ministro, sua função era garantir a estabilidade da moeda e era seu dever precaver-se contra quaisquer fatores de instabilidade, "reais" ou "psicológicos", isto é, tanto provenientes do comportamento dos agentes econômicos quanto de suas expectativas.
Era, portanto, seu dever evitar que falsas expectativas comprometessem a estabilidade da moeda e, sempre que possível, provocar expectativas favoráveis a ela.
Uma autoridade monetária que tenha "escrúpulos" em divulgar expectativas reais de inflação baixa, porque antes não divulgou expectativas duvidosas de inflação alta, não tem condições morais de exercer o poder.
Que esse fato tenha vindo a público em circunstâncias que comprometem a imagem pessoal da autoridade é um problema de outra ordem, que Ricupero teve a dignidade de resolver com seu afastamento.
Fazer disso um crime, moral ou eleitoral, é apenas parte do jogo político. É legítimo, é bom para a oposição. Será bom para o Brasil?
Existe consenso quase absoluto entre os técnicos de todos os partidos sobre as vantagens e os limites do Plano Real. Todos sabem que, sem ele, a tarefa do futuro presidente será quase irrealizável.
Todos sabem que, com ele, a tarefa do futuro presidente apenas terá começado. Todos sabem que o preço de um fracasso agora será pago mais duramente pelos mais pobres.
Portanto, todos sabem que o PT mente quando diz que o plano é um engodo, que prejudica os mais pobres, que só beneficia os banqueiros. Mentir faz parte do jogo eleitoral. Desse ponto de vista, é perfeitamente compreensível. Será patriótico?
Também é perfeitamente legítimo contestar a legitimidade das eleições, como fazia sistematicamente a UDN e fazem todos os partidos que aliam incompetência eleitoral com pouco empenho pela democracia. É conveniente para preparar golpes de Estado, mas não é democrático.
É legítimo apelar para "observadores internacionais" e provocar um clima de ilegitimidade para contestar a vitória do adversário. Tem tanta credibilidade quanto a suposta isenção do PT e do PMDB quercista no aparelhamento de instituições para fins partidários.
Pode ser útil eleitoralmente arrastar o nome do país na vala comum da fraude e da violência eleitoral, igualando-o com México, Paraguai, Guatemala, Angola, Camboja. É bom para a oposição. Será bom para o Brasil?
Desde a Constituinte o país tem assistido à reiteração de uma escolha entre reforma e estabilidade. Ninguém nega a urgência das reformas sociais. Ninguém nega a necessidade de instituições estáveis. O problema é que uns afirmam que de nada adiantam instituições estáveis se não for para garantir as reformas, enquanto outros retrucam que as reformas não se consolidam sem instituições estáveis.
Trata-se, na verdade, de uma opção entre tomar as reformas ou a estabilidade como valor em si. Para a esquerda jacobina, não é possível esperar pela estabilidade –institucional ou econômica. No limite, feito o essencial, isto é, as reformas, o resto vem depois.
Para os que valorizam a estabilidade como elemento intrínseco à ordem política, mesmo que as reformas não venham imediatamente, estará dado o quadro essencial que as torna possível e lhes dá permanência.
Qual dessas posições é legítima? Ambas. Qual das duas deverá prevalecer? A que vencer nas urnas.
Para isso, é preciso, pelo menos, aprender com os próprios erros e não culpar o adversário: o mínimo que se espera dele é que queira nos derrotar...
Também não é a justiça divina ou a dos homens que resolve esse tipo de controvérsia: nas democracias, não é o "tapetão", mas o eleitor, independentemente de seus parcos conhecimentos e de suas inclinações ideológicas supostamente voláteis.
Não é tão complicado: no dia em que a esquerda fizer as concessões necessárias para atrair o eleitorado de centro, tornar-se-á imbatível. Se eu viver até lá, terá o meu voto.

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