São Paulo, sexta-feira, 9 de setembro de 1994
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A tentação de Ricupero

JOSÉ SARNEY

Quero dar o meu testemunho sobre o ex-ministro Rubens Ricupero. Ele foi vítima de uma cilada humana e eletrônica. Muito já se escreveu sobre o episódio, colocado no devido lugar, como no brilhante artigo de Evandro Carlos de Andrade.
Conheci o Ricupero, escolhido por Tancredo Neves para trabalhar como assessor da Presidência. Trazia a bagagem de um diplomata culto, de um caráter a toda prova, de um trabalhador infatigável e de um profissional que tinha atravessado todo o período dos presidentes militares sem abandonar seu espírito crítico, com uma visão cristã de social-democracia. Com a morte de Tancredo, chamei-o e ofereci-lhe a chefia da Assessoria Especial, reestruturada e, basicamente, com o meu gosto pela política externa, a ele atribuindo o acompanhamento das ações no setor.
Lá, Ricupero confirmou seu grande conceito. Foi possível desfrutar, na rotina do trabalho diário, do prazer da conversa erudita, sábia e humana, que enriquecia os despachos com a discussão sobre literatura, história, economia, administração e todos os ramos do conhecimento. Sua formação religiosa nos aproximava mais ainda. Era e sempre foi um servidor do país, com grande espírito público e correção moral. Jamais, em sua vida privada ou pública, houve qualquer deslize.
Sua declaração de saída é uma prova de grande dignidade. Aceitou ter sucumbido, como Jó, às tentações do Diabo. Aliás, no "Livro de Jó" está uma das conversas mais amistosas de Deus com o Diabo, o que prova ser o Diabo mais perigoso do que é. Deus lhe disse, para testar Jó: "Tudo o que ele tem está em teu poder". E Jó conheceu a desgraça.
Como confessou Ricupero, ninguém o reconheceria na transcrição de sua conversa, até porque a ironia e a informalidade escritas perderam claridade.
Seu cuidado com os princípios morais foram permanentes na vida. Sua integridade é insuspeitável.
Reli e tornei a ler várias vezes a sua conversa.
Não vi o Ricupero. Vi as aspas que a parabólica não põe nas passagens mais discutidas, como aludindo a pensamentos de outros, não seus. Assim interpretei, para vê-lo, sentindo nas suas chagas as marcas dos seus pecados e o castigo de Deus, sem desconfiar de que tudo aquilo era coisa do Diabo para pôr à prova sua fé, sua lealdade a um bem muito maior, que é a humildade para pedir perdão. Perdão que ele não precisava pedir, porque seus lábios não eram seus e, sim, obra da vontade de Deus que, pela força do Diabo, queria testar-lhe o amor.
O episódio eleva-o no meu conceito. Sei que ninguém mais do que ele tem noção dos princípios morais. Tem uma vida de retidão e tem o temor de Deus. E sabe que, perante Ele, tem de prestar contas.

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