São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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A ética esquecida

JANIO DE FREITAS

Alguns intelectuais e, em maior número, subintelectuais providenciam um manifesto de solidariedade ao embaixador Rubens Ricupero. Em significativa associação com o grande empresariado, a iniciativa é uma operação política decorrente da constatada queda de Fernando Henrique Cardoso e aumento dos indecisos nos grandes centros urbanos, segundo várias pesquisas.
Pretendem os idealizadores do manifesto que uma apresentação mais consistente de Ricupero como vítima, atingido por uma grande injustiça, leve de volta os fernandistas de repente arredios. Se Ricupero foi vítima, os culpados são os que deram relevo à sua erupção verbal, os que reagiram com pasmo e crítica ética às práticas que confessou espontaneamente, sem sequer haver estímulo do seu quase emudecido interlocutor.
É evidente que o manifesto traz a marca daquilo mesmo que provocou a reação de pasmo ao Ricupero que se mostrou na TV. A deliberada inversão tem a mesma procedência anti-ética que o então ministro se permitiu adotar na sua relação de autoridade com a opinião nacional, ao que ele próprio revelou.
Neste sentido, o manifesto reproduz os artigos, com uma ou outra exceção eventual, em defesa de Ricupero ou de responsabilização dos seus críticos por prática de injustiça. O que me pergunto é o quanto vários desses autores estão, até sem ter consciência disso, desculpando a si mesmos. Desculpando o malfeito de outrem para que convivam melhor com a memória das suas malfeituras, os seus ardis, as suas deslealdades, o seu oportunismo carreirista.
Invocam esses efêmeros solidários, como prova da suposta injustiça, o passado de Ricupero. Não encontrei, nas muitas críticas que li ao Ricupero revelado, nem uma só referência desabonadora ao seu passado, nem às suas qualidades intelectuais e de chefe de família. Foi, aliás, o próprio reconhecimento desse passado e dessas qualidades que conferiu caráter chocante ao desnudamento de Ricupero. Mas a importância inegável do passado e de certas qualidades, para a visão que formamos uns dos outros, não altera a natureza de um fato presente. O mau passado elimina confiança e admiração, mas o bom passado não é um habeas-corpus. Cada minuto da vida é uma encruzilhada.
Chegou alguém até ao argumento calhorda de que as práticas confessadas por Ricupero são comuns aos homens públicos, não havendo, por isso, o que condenar nelas. Se esse contra-senso tivesse um mínimo de valor moral, os assaltantes e os corruptos estariam elevados a cidadãos purificados pelos precedentes alheios. A rigor, o Código Penal deveria ser extinto, porque nada há de novo em matéria de crime.
Ricupero caiu em cilada, como quer, entre outros, o deputado José Serra. Ou em um relaxamento de sua atenção, por cansaço ou por vaidade, como pretendem outros, apoiados pelas considerações de Ricupero sobre o episódio. São explicações que tentam esconder a objetividade de um fato testemunhado, sem, contudo, conseguirem esconder o seu verdadeiro significado: preferiam que Ricupero continuasse as suas práticas sem as revelar. Para esses explicadores e agora manifestadores, o erro não esteve na prática, mas na revelação delas.
Devem ter fortes motivos para abominar revelações.

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