São Paulo, terça-feira, 13 de setembro de 1994
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Ricupero não fez adultério contra a pátria

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Agora que já passou a onda maior, podemos reler e avaliar o que Ricupero disse no ar, ou melhor, o que "não" disse no ar ou, melhor ainda, o que disse no "não-ar".
O mundo hoje se divide entre o que entrou na TV e o que não entrou.
Quando eu soube da notícia, esperava ver uma imagem de "grand guignol" pornô. O Ricupero esguedelhado, dançando nu, estirando a língua para o vídeo, em requebros endemoniados. Esperava ver a tentação de Santo Antônio pegado nele como um demônio de Bosch cavalgando ratos. E fui ver o tal "tape" como quem vai ver a Sharon Stone nua esfaqueando os pais. Que vi então? Nada. Ou quase nada. Vi um homem abatido pelo cansaço de ter de mentir sempre no "ar legítimo", cansado de aparentar santidade, confiabilidade. Vi que ele cedeu ao desejo, à volúpia de falar um pouco a verdade que ele nunca podia dizer, pois só se pode fazer política dizendo menos, ou mais, nunca o real. Ou seja, se uma mentira for bem transmitida, a cores e com som nobre, é a verdade. Uma verdade dita por acaso, e mal transmitida –é o Crime.
Demoniozinho
E então um "poltergeist", o demoniozinho de nariz de rato, fê-lo baixar a guarda. E ele falou o quê?
Basicamente, entregou que a luta contra a inflação é uma luta psicológica, uma luta na mídia com sustos e trancos. Disse: "Eu faço um clima, diversão. Faço estas coisas por instinto. Armo uma confusão".
Ricupero deixou claro também em sua "não-fala", em sua "criminosa verdade" que acha que a vitória de FHC é parte essencial do Plano. E não o contrário. Não é só o Plano que tem de eleger o FHC; o FHC eleito fará o Plano dar certo. Deixou claro que teme o Lula e seu voluntarismo arcaico, porque sabe que a vitória do PT significa desmantelamento da sutil obra construída com concessões, acordos, psicologia social e luta parlamentar, durante o calvário de mais de um ano, quando o PT se uniu à UDR para bloquear reformas na Constituição.
Liberalismo selvagem
Ricupero sabe que com o PT mudando o rumo, temos hiperinflação em seis meses e tomada do poder no país (aí, sim) por um liberalismo selvagem e "americano". Ao contrário do que a mídia diz, Ricupero teve escrúpulo sim, ao dizer: "O IPC-r cai agora em setembro, mas eu não vou dizer, porque não quero anunciar. (....) Não dá pra anunciar agora senão o pessoal do PT vai dizer que nós...".
Isto é um escrúpulo de "não" anunciar antes da hora e é uma estratégia de defesa ante um candidato que quer a inflação como salvação eleitoral. Em outras palavras, o que é melhor ou pior como "escrúpulo?" Querer a vitória do Plano e querer eleger um continuador ou querer a derrocada financeira do país para eleger o Lula? Isto é o velho stalinismo do "quanto pior melhor". Imaginem como deve ser o papo "escrupuloso" de uma reunião secreta do PT ou da CUT. Só que ainda não teve uma parabólica.
Vejamos outra frase "terrível" de Ricupero.
Ricupero obtempera a Monforte: "Não sei se é verdade, mas tem gente que está convencida disso" (de que petistas do IBGE teriam manipulado o índice do IPC-r). Isto ele disse porque o cálculo do IPC-r colocou o aluguel dos meses anteriores "todo de uma vez no índice". Ricupero refere-se a um boato sabido (não apenas no IBGE).
Ricupero falou que ia dar porrada e polícia em grevista, como declararam? Não li isso (posso estar cego ou louco, é possível.) Vejam:
Monforte: "Os juros deram uma subida de novo?"
Ricupero: "Havia sinais. Com esta história de IPC-r, de reajuste, o pessoal querendo fazer greve, então tinha de dar uma pancada (com os juros altos). E eu vou dar outra (pancada) com o negócio de importação. Isso não é brincadeira, vou fazer um troço firme." Ou seja, pancada com juros e com importações. Onde está a polícia?
Bandido

Outro trecho, ainda sobre os "inflation mongers" (os "camelôs da inflação"): "Porque esses caras.... você tá jogando aí é com bandido... esses caras... é tudo bandido!" Disse a palavra "empresário"? Não. Na transcrição de "Veja" não disse.
Disse que tem "muito bandido". Nem precisava usar este lugar-comum, num país onde a margem de lucro é de 100% e acham pouco, onde até hoje o Congresso não votou o Orçamento. Só tem bandido e picareta, como bem disse o Lula.
Vejamos agora a terrível frase do "escrúpulo", em capa negra da "Veja".
Escrúpulo

Ricupero teve receio de ser criticado pela equipe econômica, já que proibira a divulgação antecipada do IPC-r ruim. Portanto, queria o aval da equipe para divulgar com antecipação o IPC-r bom. E disse a Monforte: "Se eu conseguir convencer a equipe, te dou prioridade na divulgação do índice". E diz a frase: "Eu não tenho escrúpulo: "O que é bom, a gente fatura; o que é ruim, esconde." Mas, Ricupero escondeu o índice ruim de 5%? Não. Nem poderia. Apenas não queria lançar açodadamente a boa notícia de um índice mais baixo para setembro. Poderia parecer que que ia proteger FHC. Que ele quer, óbvio. Ou seja, ele tem de esconder o que quer e ostentar o que não quer. Onde está a verdade e onde está a mentira? A imprensa quer que ele minta para ser a "verdade". Além disso, todos sabem que a delicada tarefa do "timing" na luta contra a inflação é feita de paranóias, cobiças, loucuras brasileiras, delírios inerciais e boatos para especulação. Como todos sabemos. "Não tenha dúvida, este não é um país racional", disse Ricupero mais adiante. E quem duvida disso? Um país que já esqueceu que tinha 50% de inflação há dois meses atrás?
Ricupero diz também: "Estou querendo ficar no ar o tempo todo!". Faz muito bem, tem de ficar no ar para defender o Plano, que depende muito de se instruir uma população de ignorantes que a miséria forjou durante séculos, instruí-la para se proteger.
É necessário o "Fantástico" o tempo todo, para ajudar a população a não ser enganada pelos que querem vê-la desnorteada e então "faturar" os votos do fracasso.
Conheço Ricupero e o defendo com ardor: sei de seu profundo amor ao país e do desejo de matar esta calamidade que nos assola há 20 anos, este clientelismo que nos mata há quatro séculos, desde que esta terra era uma prisão para degredados: "Ei, pá, mande esse gajo ladrão para o Brasil!..."
Onde errou Ricupero então? Errou porque ficou mascarado por uns momentos e falou a "gaffe" de que o governo precisava mais dele que ele do governo e de que era o principal eleitor de FHC. O que é verdade. Errou porque disse a verdade.
Ou seja, o grande crime deste grande homem foi dois minutos de soberba e admitir que a vitória de FHC é essencial para a vitória do Plano. Como somos manipuláveis! Nos EUA, na Alemanha, os presidentes lutam por si ou por seus candidatos. Isto é normal numa democracia.
O que não é normal numa democracia é o recente surto de "moralismo idealizado" que as CPIs criaram, CPIs que funcionaram como uma cortina de fumaça contra a essencial reforma da Constituição absurda de 88.
Geraram um maniqueísmo de "santo ou canalha". Betinho era um "santo". Um dia, aceitou uma grana de um bicheiro. Pronto, foi transformado em Cristo enlameado. Ricupero, a mesma coisa. Um passado de 30 anos de seriedade em segundos é queimado como uma bruxa de peça infantil. Alguns descarados de quinta querem até impedi-lo de lecionar.
Aqui se esquecem os crimes de canalhas contumazes, mas se criam "santos" para depois martirizá-los.
Ricupero foi usado como sendo parte de um terrível flagrante de crime. Tudo tinha a aparência de um "adultério contra a pátria": a imagem ruim, o clima detetivesco, as fitas enviadas por "chicos vigilantes", tudo. Houve tudo, só não houve crime. Clima de flagrante e pífia revelação.
Mas, no teatro das aparências, ele teve de renunciar para não fazer ruir o edifício de hipocrisia em que se monta nossa sociedade do espetáculo.

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