São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 1994
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Forte x fraco

STALIMIR VIEIRA

Carro forte atropela menina de 3 anos. A criança está em estado grave na UTI. Ao ler essa notícia recentemente, lembrei de uma historinha imaginária que sempre me ocorre ao parar perto de um carro forte.
É assim: estou ciceroneando um extraterrestre. Vamos percorrendo a cidade em meu carro, observando as pessoas, os prédios, o movimento dos automóveis e ele registrando tudo.
Acreditemos que ele seja um sociólogo marciano desenvolvendo sua tese de doutorado. Esperto, ao ver um ônibus, por exemplo, não pergunta "o que é isso?", mas prefere perguntar "isso deve ser um meio de transporte coletivo, certo?".
Sua perspicácia vai funcionando muito bem até o momento em que paramos atrás de um carro forte. Ele olha, olha, estuda com cuidado, mas se rende. "O que esse veículo transporta?" Eu aproveito para desafiá-lo: "Tente adivinhar".
Então, ele tenta: "Bem, deixe ver, é quase um tanque de guerra, blindado, com uma segurança ostensiva, aparentemente inviolável. Sendo assim, imagino que deva transportar algo frágil, indefeso, necessitado de proteção absoluta...hummm... já sei, crianças!"
Contenho o riso, diante de tão ingênua evidência. Aceno negativamente a cabeça e informo a meu convidado que aquele carro inviolável, na verdade, transporta dinheiro, ou seja, cédulas de papel produzidas em série em máquinas de imprimir sempre que se assim desejar.
Ainda perturbado com a resposta, meu interlocutor desvia o olhar, como quem busca no caos um esclarecimento, quando se depara com a antítese do que acabamos de ver: entre os automóveis, cujos pneus rodam a centímetros de seus pés descalços, sujas, maltrapilhas, famintas, enfim, as crianças.
Meu pobre ET sofre um curto-circuito: olha rápida e alternadamente para as crianças, absolutamente vulneráveis, e para o carro forte hermeticamente fechado, poderoso, imbatível. Não entende. Fico pensando o que passaria pela cabeça dele ao ler no jornal que um desses carros fortes colocou seu peso, sua estrutura reforçada, sua blindagem, suas toneladas de papel moeda sobre o corpinho de uma menina de 3 anos.
Certamente não lhe ocorreria o que ocorreu ao motorista de táxi, tipicamente paulistano, dono de uma Quantum novinha e uma casa de seis cômodos num subúrbio próximo, a quem eu relatei o fato e que comentou, distante, mais que qualquer marciano: "Será que ela não atravessou a rua sem olhar para os lados?" Não respondi, mas pensei forte: "Não, meu amigo, na verdade ela atravessou a vida sem olhar para cima".

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