São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 1994
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Hogwood traz Beethoven 'chocante' a SP

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Christopher Hogwood, 52, chega esta semana a São Paulo pela terceira vez. Mas em lugar do barroco, programado em 1987 e em 1990, ele se diz disposto desta vez a "chocar" com sua concepção das duas primeiras sinfonias de Ludwig van Beethoven, compostas entre 1799 e 1802.
Não as executará com uma grande orquestra sinfônica, com mais de uma centena de músicos. A Academy of Ancient Music (Academia de Música Antiga), de Cambridge, reúne 39 intérpretes com instrumentos originais ou cópias do século 18.
Hogwood, um dos líderes do movimento que procura reconstruir para a música o contexto inicial de sua criação, tem de Beethoven uma visão essencialmente clássica e nada romântica.
Eis os principais trechos de sua entrevista à Folha.
Folha -É possível aplicar à música o conceito de verdade?
Christopher Hogwood - Sim, mas isso nada teria a ver com a sua reconstituição histórica. A verdade diz respeito a algo no qual acreditamos sinceramente durante a interpretação. Eu posso muito bem tocar Bach num piano e ser verdadeiro ou, ao contrário, interpretar Bach num cravo (o instrumento que o compositor originariamente utilizava) e não sê-lo.
Folha - Em comparação com as sinfonias de Beethoven da Academy, gravações como as de Toscanini ou Furtwangler não estariam envelhecidas?
Hogwood - Elas tecnicamente já envelheceram por serem gravações antigas, com técnicas mais rudimentares de reprodução do som. Mas continuam sendo maravilhosas e com muito rigor.
Folha - Ainda sobre Beethoven, há algo de fundamentalmente diferente entre a integral que o sr. gravou e a dirigida por Nikolaus Harnoncourt, também partidário da música histórica?
Hogwood - Com certeza. A música histórica possui a particularidade de fazer com que uma determinada concepção de interpretação se torne bastante transparente, o que não ocorre com a concepção mais tradicional. No rádio, por exemplo, ouço com frequência alguma sinfonia de Beethoven e não consigo identificar a orquestra –se é Filadélfia, Dresden, Boston.
Folha - E como o sr. definiria a sua própria leitura?
Hogwood - Minha pretensão é de me tornar ausente, de não deixar que o público sinta minha presença. O exemplo oposto seria uma gravação da Filarmônica de Berlim dirigida por Karajan, que aparece como intermediário entre a orquestra e o público.
Folha - O sr. gosta de chocar?
Hogwood - Certamente, e é este um de meus grandes objetivos nesta turnê. Desejaria que o público brasileiro, acostumado a execuções mais tradicionais, sinta-se chocado com o nosso trabalho.
Folha - O sr. se sente mais à vontade com a Academy ou com uma orquestra como a de Saint Louis, da qual também é um dos regentes contratados?
Hogwood - Sinto-me confortável com os dois conjuntos, e por uma simples razão. As grandes orquestras que não foram concebidas originariamente para trabalhar com instrumentos de época têm hoje uma postura diferenciada com relação à música. Os instrumentistas conhecem abundantemente gravações concebidas segundo um rigor histórico maior e por isso se tornam mais abertos à introdução de inovações.
Folha - O sr. e a Academy já concluíram o projeto de gravar integralmente as 107 sinfonias de Haydn?
Hogwood - Ainda não. É um trabalho de fôlego. Na semana passada acabamos de gravar as de número 64 e 65.
Folha - O sr. acha que as bibliotecas ainda escondem algum compositor que no futuro se tornará um grande clássico?
Hogwood - Não creio que seja este o caso. O que há é a redescoberta de excelentes partituras que não são interpretadas adequadamente. Veja-se, por exemplo, Karl Philip Emmanuel Bach. Um grande compositor, que ainda está à procura de uma forma correta de interpretação.
Folha - Qual seria essa forma correta?
Hogwood - Durante muitos anos, prevaleceu a idéia de que a boa música era a música de concerto, o que não é verdade. Há também músicas excelentes que não foram necessariamente feitas para serem executadas para grandes platéias. Isso condiciona concepções, diferenças performáticas fundamentais.
Folha - Por que o movimento pela música histórica foi tão mais precoce num país como a Inglaterra e mais recente num país como a Itália, que afinal foi o que produziu mais barroco?
Hogwood - Isso se deve a um conjunto de fatores. O primeiro deles está no papel de Londres como pólo de irradiação de novidades. O que é aceito pelo público londrino imediatamente se espalha por todo o país.
A Itália, ao contrário, tem muitos centros musicais, e nem sempre novidades de um irradiam com facilidade para outros. A seguir, as orquestras inglesas são todas elas basicamente formadas por músicos free-lancers. Um mesmo instrumentista percorre várias formações e acaba transportando uma flexibilidade maior na adoção de inovações conceituais.
Folha - As gravadoras também não tiveram um papel?
Hogwood - Sem dúvida alguma. Hoje em dia, uma gravadora britânica não aceitaria editar peças instrumentais de Bach que não fossem com instrumentos de época. E há, também, um último fator: a BBC (emissora estatal inglesa). Ela deu uma grande divulgação ao trabalho de conjuntos como o meu.
Folha - O computador foi de alguma ajuda em seu trabalho?
Hogwood - Sim, mas no sentido mais trivial, ajudando-me a catalogar ou a fazer certas comparações. Existem pessoas que trabalham com facilidade numa tela e outras que precisam sentir fisicamente a brochura impressa, o caderno de anotações. Eu faço parte deste último grupo.
Folha - O CD-ROM e a multimídia na informática são bons meios para se aprender música?
Hogwood - Depende muito. Já tive contato com programas excelentes em CD-ROM e com outros que eram bastante fraquinhos.
Folha - O que o sr. gosta de ler?
Hogwood - Sou desde minha juventude bastante fascinado por biografias, autobiografias e jornais íntimos. Talvez uma grande parte das informações históricas que me foram úteis profissionalmente tenha vindo dessas edições.
Folha - O sr. gosta de matemática?
Hogwood - Quando adolescente, meus planos eram o de ser arquiteto, e até hoje nunca abandonei o fascínio pela redução a duas dimensões do espaço tridimensional. Gosto das linhas e das sombras, gosto de reconstituir os processos de organização espacial.
Folha - O sr. também pinta?
Hogwood - Não. Já pintei um pouco quando moço. Meu relacionamento hoje com a pintura é apenas a de um amante, a de um colecionador.

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