São Paulo, quarta-feira, 14 de setembro de 1994
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"Olho Mágico" ensina desatenção zen

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

E stá virando mania o livro "Olho Mágico", editado pela Martins fontes. Não é para menos. Trata-se de uma descoberta literalmente sensacional.
À primeira vista, você está folheando apenas um livro de ilustrações bonitas mas ordinárias, na maior parte das vezes parecidas com papel para presentes. Mas é só seguir as instruções de "como" ver cada estampa, e o verdadeiro presente aparece.
Quase todo mundo já sabe, mas repito. Você tem de encostar a página na ponta do nariz, fixando o olhar num ponto qualquer. Vai afastando lentamente a figura –e surge uma nova imagem, tridimensional.
No começo, não é fácil. À medida que a gente afasta o livro do nariz, a tendência do olhar é manter o foco, preservando os detalhes da figura originalmente percebida. O importante, então, não é manter o foco, mas manter o "envesgamento" do olhar. Numa espécie de relaxamento visual, a imagem em três dimensões intumesce aos poucos.
Várias coisas, nesse livro, merecem ser comentadas. A primeira é que tentativas anteriores de obter imagem em três dimensões não tinham tanta graça.
Dependiam, por exemplo, daqueles óculos de papel com duas lentes, uma verde, outra vermelha; nas histórias em quadrinhos, a coisa ficava pouco nítida. No cinema, tentaram há alguns anos reviver a técnica, numa das versões da série "Hora do Pesadelo". Cartões postais em holografia eram escuros; o que se ganhava em profundidade se perdia em cor e beleza.
Com "Olho Mágico", não precisamos de nenhum aparato como os óculos de papel. E a imagem não está ali pronta para ser vista, como na holografia. É como se a aparição tridimensional fosse obra nossa, do nosso olhar, e não de uma técnica qualquer.
O fantástico da invenção é que nada faria prever do que ela é capaz. Como é que pontos secretos, linhas escondidas, programadas por computador, podem assim reorganizar-se em três dimensões, com o concurso de nosso olhar, ou, para ser mais exato: com o concurso de nossa desatenção, de nosso desfocamento? Não sei.
O que sei é que, uma vez operado o milagre, de uma figura regular, abstrata e decorativa surgem cangurus boxeadores, locomotivas, saveiros, aviões, com um brilho de espelho, vibrando na retina, abismais.
A proeza, que é de ordem técnica, fica parecendo subjetiva –pois só aparece se eu deixar que ela apareça, desfocando a visão. E esse ato, que é de natureza voluntária, fica parecendo involuntário, pois não adianta eu simplesmente "querer" enxergar a imagem tridimensional. É preciso querer deixar que ela apareça.
Às vezes, o acontecimento foge de nós quase no momento em que ia acontecer. Tenta-se de novo, e ele acontece. É como se fosse uma sorte ou um azar, que não obstante depende apenas de nós mesmos, já que as condições objetivas estão dadas pelo livro.
A experiência proporcionada por "Olho Mágico" talvez se inscreva numa vasta ordem de fenômenos, esses em que se dilui o limite entre a vontade subjetiva e o mecanismo involuntário das coisas.
Penso, por exemplo, na inspiração artística –um bom pintor, por mais que deseje, só fará um bom quadro quando parar de preocupar-se em "querer" fazer o quadro e, de repente, puser mãos à obra. Ou na política: o candidato quer a vitória, as condições estão dadas para que ele vença, mas a vitória não é apenas alguma coisa que se conquista; é uma coisa que também "chega", que "aparece" –e o puro voluntarismo não basta para isso. Ou no sexo: tanto no orgasmo feminino quanto na ereção, uma certa desatenção face ao objetivo tende a ser útil quando se pretende alcançá-lo.
"Olho Mágico" é também um livro que se inscreve na voga dos livros-brinquedo, dos livros sem palavra. Já tivemos a série "Onde Está Wally?". Talvez, no futuro, as pessoas venham a rir desses passatempos, considerando-os toscos demais.
Arrisco, entretanto, a idéia de que anunciam perspectivas para a educação dos sentidos humanos. Aquelas complicadas multidões em que Wally está perdido, as irisadas e hipnóticas páginas de "Olho Mágico", até os infernais video games, podem muito estar ensinando à humanidade padrões de agudeza visual, de presteza e atenção, ou de desatenção zen, que estavam perdidas há bom tempo.
Algumas palavras sobre a educação artística. De que adianta ensinarem nas escolas a fazer batiks ou pinturas com o dedo, quando não se ensina o essencial: ver? Ou ensinar flauta doce quando não se ensina a ouvir?
Ver, ouvir, ler, até falar –de tudo isso, creio, o sistema educacional descuida muito. Pessoas de boa formação, por exemplo, são obrigadas a falar em público. O resultado é muitas vezes desastroso, e só um grande talento natural supera essa falha de formação. Se a educação de uma pessoa consiste em desenvolver os seus talentos, ou em ajudá-la a fingir que os tem, era tempo de prestar mais atenção a essas coisas.

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