São Paulo, sábado, 17 de setembro de 1994
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Crime no tapete verde

JOSUÉ MACHADO

JOSUÉ MACHADO
Um dia destes, na gravação de um jogo antigo da seleção brasileira de futebol, quando ela fazia gols às pencas, o narrador disse que "o balão descreveu uma parábola e aninhou-se no véu da noiva". Ele disse isso. Disse, sim.
É possível que labaredas da alma de Luíz de Góngora y Argote (1561-1627), o poeta espanhol que criou o gongorismo com sua enxurrada de metáforas e trocadalhos, tenham-se infiltrado em alguns desses inspirados narradores. E tome "tapete verde", "dentro das quatro linhas", "cozinha", "zona do agrião", "balão", "redonda", "couro", "pelota", "pelo que ele fez dentro de campo", "gorduchinha", "lá onde a coruja fez o ninho", "jogar contra o próprio patrimônio", sinônimo de gol contra ou de jogada que resulte em gol contra.
Um desses simpáticos locutores grita "Tá lá um corpo caído no chão!" cada vez que um jogador se esparrama no tapete verde. Como num jogo há de vinte a cinquenta faltas, o amigo exclama em todas elas o verso da bela letra que o Aldir Blanc escreveu para o samba musicado por João Bosco, "De frente pro crime". Pode-se dizer que é muito.
Por que ele faz isso com os telespectadores? Que tal uma ou duas vezes por jogo? Vá lá, cinco ou seis. Serão casos de atropelamento dentro das quatro linhas. E atropelamento com requintes de crueldade (como dizem os da polícia), de que são capazes zagueirões como Júnior Baiano, Gralak, Tonhão e alguns outros.
Válber e o Cágado

"Zagueirão" e "goleirão" também foram incorporados ao vocabulário de um ou outro narrador. E são zagueirões ou goleirões antes pelo tamanho do que pela qualidade. Os zagueiros costumam ser truculentos e algo trombadores. Não o Válber, do São Paulo. Se for zagueirão, será pela técnica, porque não é dos mais altos e domina a gorduchinha com alguma arte. Pelo menos do chão até 1,44m, altura do peito dele, sem pular. Porque o Válber não salta. Ou parece que não salta. Se salta, enterra o pescoço entre os ombros, curva-se e deixa a pelota passar a centímetros da cabeça bem protegida pelas omoplatas. Como um cágado, primo da tartaruga: perigo à vista, cabeça encolhida. Verdade que cabeça foi feita principalmente para pensar, embora nem todos percebam isso. O Válber deve perceber.
Portanto, se o chamarem de zagueirão, não será porque salta lá em cima e afasta o perigo da área com uma ombrada no centro-avante atrevido e uma testada no couro. Será porque às vezes sai da área fintando três ou quatro e avança célere em direção ao gol adversário, para alegria do torcedor e desespero do técnico. De tanto desesperar-se, Telê talvez tenha encontrado para o Válber lugar melhor do que o dos quase sempre toscos zagueiros expectantes: soltou-o, para que fique na sobra e flutue com brilho e leveza, a redonda presa aos pés; assim, tenta fazer dele um bom líbero capaz de agredir a defesa adversária de surpresa.
Mas faltam-lhe duas ou três coisinhas para que lembre o Beckenbauer: que não alterne jogadas brilhantes com outras, de Zinho, principalmente na zona do agrião, capazes de resultar em prejuízo para o próprio patrimônio; que aprenda a lançar bem a pelota; e que, ao pular para cabecear, faça como o senador Marco Maciel, conhecido como periscópio: estique o pescoço. Nem precisa tanto.
Então teremos um ótimo líbero, capaz de alegrar o futebol marcado com o gelo do zagalal "que empate o melhor".
JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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