São Paulo, quarta-feira, 21 de setembro de 1994
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Um esporte em que a terra é o fim

LUIZ PAULO BARAVELLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os americanos, com sua mania de compartimentar em caixas os fenômenos da cultura, inventaram o termo "spectator sports", esportes para serem observados.
Há esportes autocentrados (regatas, alpinismo, ralis), que são só para serem exercidos e que, embora não repudiem o espectador, não são feitos especialmente para ele.
Todo esporte é uma forma de simbolizar (para tentar entendê-las) as forças em ação no mundo e na sociedade.
Estes esportes "non-spectator", se exercidos sem hipocrisia, são uma forma quase religiosa de procura, análoga aos 40 dias e 40 noites passados em meditação solitária no deserto –indivíduos com o melhor de sua constituição e engenho em confronto simbólico com os limites maiores da natureza.
São viagens particulares, inescrutáveis.
Em que pensa o alpinista solitário é assunto seu e não é necessariamente visível externamente. Suspenso por uma corda a 300 metros de altura, pode refletir gravemente sobre a vida e a morte, mas pode também estar pensando no mau negócio que fez quando trocou os amortecedores do carro. Nunca saberemos: ele não nos dirá e, principalmente, não estaremos lá para ver.
Por outro lado, os esportes para espectadores são uma forma de arte. São encenações, espetáculos calculados para serem vistos e lidos.
Não são exatamente teatro porque o desfecho é imprevisível. O teatro é uma caixinha de não-surpresas, mas um jogo junta os participantes, impõe as regras e deixa o roteiro/enredo ser escrito ao vivo.
Um jogo de futebol é algo de verdade, talvez uma das únicas coisas "de verdade" dentre as que são feitas para serem assistidas. Se vemos na TV que a bola entrou, este é um instante absoluto –não foi ensaiado, não há versões pessoais, não pode ser editado, desmentido, colorizado ou receber efeitos especiais.
Em um mundo onde tudo, dos índices de inflação a quem ganhou uma guerra, depende de interpretação, uma bola na rede é a epifania possível da verdade (o quanto a presença cultural cada vez maior dos esportes influencia as artes é assunto para outro artigo –o que foi o modernismo senão a introdução dessa "verdade futebolística" no reino anterior do artifício e da fabricação?).
Se todos os esportes simbolizam e teatralizam as relações sociais e pessoais, cada um escolhe enfatizar uma parte delas.
Imagino que o futebol seja o mais abrangente por sua complexidade, e não é de surpreender sua preferência mundial. Gosto muito, como todo mundo, mas tenho (e quero tentar entender aqui) uma atração misteriosa pelo vôlei.
Pelos padrões do futebol é monótono, imóvel, repetitivo, limitado. O que há nele para ver? Ou, de outro modo, o que está sendo dramatizado ali?
É um jogo que, em princípio, ocupa o campo todo o tempo todo.
Ligado a isto há um longo e fascinante assunto que tento resumir em poucas palavras: talvez a grande invenção da humanidade não tenha sido nem o fogo nem a roda; os dois existiram desde sempre na natureza, nosso mérito foi observá-los e aprender como fabricá-los e utilizá-los.
Por outro lado (e isso deve ter interesse maior para os esportistas), nós, devido à nossa antecedência, hum... simiesca, tivemos que inventar um jeito de ficar de pé. Nenhum bicho sem asas tem uma base tão pequena em relação à altura como os pés de uma pessoa.
Isto implica em um contínuo equilibrar-se, procurando não cair, jogando o peso do corpo em torno de um eixo vertical. Por isso, também só estamos confortáveis em uma superfície dura, plana e horizontal.
Quando deixamos de ser quadrúpedes, passamos a ser um desejo ambulante pelo ângulo reto. Isso fez com que inventássemos algo que não existe na natureza, para nos simbolizar: o retângulo.
Talvez essa tenha sido a invenção decisiva, porque daí para a frente toda nossa civilização foi uma ação dentro de um retângulo.
É nosso repúdio ao mundo animal, a afirmação de nossa artificialidade. Em outras palavras, quanto mais retangular e urbano, mais civilizado. A geometria do vôlei o torna um diálogo entre dois retângulos, duas salas cheias de gente autoconsciente.
Aí entra um segundo aspecto não menos importante. Estas salas são povoadas não de gente, mas de mulheres. O vôlei é um jogo essencialmente feminino.
É claro que homens podem jogar, mas são homens jogando um jogo de mulheres –fica errado, muito rápido e forte, tão errado quanto mulheres jogando basquete, um jogo para rapazes, que se esbarram tentando alcançar um aro quase inatingível, duro, mas com um interior macio, e "enterrar"; um sexo mecânico, repetitivo, suarento, juvenil.
Os jogos sem retângulo são essencialmente aventuras masculinas e, portanto, infantis, cegas, desordenadas (é fascinante pensar que na antiguidade, enquanto homens/crianças estavam ocupados em suas guerras, viagens e caçadas caóticas, as mulheres estavam pacientemente inventando o quadriculado da computação em seus teares e bordados. Hoje somos todos mulheres, mas isso é também outra história).
O jogo das mulheres pode ser furioso e concentrado, mas nunca é violento; elas nunca matam, como os homens fazem. Matar não é feminino. Para mim, feminino e metafísico têm mais ou menos o mesmo sentido.
O vôlei é um jogo do ar. É impossível para seres humanos existirem no nada, mas esse jogo se passa no meio físico menos físico e denso que podemos habitar.
O futebol é essencialmente um jogo da terra, mas a terra no vôlei é o fim, a derrota; perde-se quando não se consegue evitar o curto-circuito da bola com a terra.
Um jogador de futebol parece ter seu centro de gravidade lá em baixo, no eixo dos quadris, imagino, mas uma jogadora de vôlei gira em torno de um ponto entre o plexo solar e a cabeça (não sei se isto é mesmo assim; estou pensando não em ortopedia mas na imagem, e imagem é a raiz da palavra imaginação).
Falei antes na sala. Esse jogo também é feminino, no sentido da casa. Acho que é um jogo de defender sua casa e, de dentro dela, atacar a casa das rivais. A mitologia está repleta de Danaides, Musas, Amazonas, Plêiades, grupos de mulheres que lutam juntas e compartilham um destino comum.
Essas casas se observam através de uma janela, uma trama retangular (de novo a computação), e que, como na história da invenção do retângulo ou do quadro de pintura, é o reconhecimento dos limites do universo conhecido e em que, em ambos os casos, não se pode tocar.
A bola passar por cima é o exercício desta metafísica a que me referi. Um saque "queimar" a rede é uma boa metáfora do que acontece quando o físico e o metafísico se tocam.
Não importa qual veio antes, mas o tênis é conceitualmente um primo pobre do vôlei, um jogo solitário, rasteiro, histérico (sem falar em coisas piores como pingue-pongue e badminton).
No tênis, a bola é um ponto, uma mosquinha amarela a ser raquetada rapidamente; no vôlei é uma esfera branca a ser tocada com a ponta dos dedos.
O vôlei é o único esporte de que me lembro em que a bola é uma esfera, corpo celeste, um mensageiro a ser acariciado. E a mensagem sempre é: "nós conseguimos existir só no ar, mas faremos vocês terem consciência do fim, da terra".
Essa geometria simbólica pode ser entendida melhor no diagrama de uma jogada típica: saque, devolução, largadinha. Essas trajetórias são parábolas. Os pés existem no retângulo duro; as mãos, o mais alto que podem, enviam a bola mensageira em curvas elegantes, mas mortais.
Uma cortada é um raio (uma reta) dirigido ao reino dos pés como a nos lembrar que a derrota é ser devolvido à geometria básica de tentar ficar em pé.
O feminino no vôlei é particularmente erótico porque se trata de mulheres concentradas, em luta entre si, e que não estão pensando nisso, nem olhando para nós.
Não há nada menos erótico do que fotos "eróticas" nas revistas para homens. Elas sabem que estão sendo fotografadas e fazem suas caras e bocas calculadamente para nós (para brochar de vez faça uma experiência de tapar o resto e deixar apenas os olhos delas nessas fotos).
O realmente erótico do vôlei é que ele não é feito para isso. Só um marido muito ingênuo acha mais excitante quando sua mulher usa lingerie preta e segura uma rosa nos dentes do que quando está pensando em outra coisa, de luvas e macacão, cuidando do jardim, suada e com o cabelo caindo na testa.
Isso está subjacente na própria organização da quadra; o vôlei é um dos jogos onde se pode estar mais perto da quadra, mais perto das jogadoras.
É feito para se olhar de perto (sim, apesar de as regras serem feitas pelos burocratas esportivos, elas também embutem uma psiquê).
Mulheres nunca brincam, muito menos em público, e sua concentração é o realmente atraente. A essência do erotismo é a mulher querer e estamos aqui para ver isso (e, por falar nisso, a essência da pornografia é a mulher não querer).
É essa mágica do querer que transforma um bando de varapaus mal acabadas em deusas voadoras.
Na verdade, como jogo feminino, não se joga para ganhar. Creio mesmo que o jogo todo existe só para que se possa ter um epílogo, que acho encantatório.
A rede, que durante o jogo todo não pode ser tocada nem atravessada, serve, no fim, para uma cerimônia: as jogadoras dos dois times se tocam delicadamente sob o retângulo, como que reafirmando uma solidariedade e uma identificação abaixo do limite da civilização. Tudo termina em restauração nesse escuro simbólico e vamos todos para casa pensar na vida.

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