São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O muro invisível de Berlim

DANIELA MEIXNER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma cruz cuidadosamente pintada de azul enfeita a margem da ficha. O livro "A Imprensa a Serviço da Unidade Européia", publicado em Viena em 1958, está catalogado na "Biblioteca Pública de Berlim –Patrimônio Cultural Prussiano". Mais exatamente na Casa 1, Unter den Linden, rua da antiga Berlim que vai da Alexanderplatz até a Porta de Brandenburgo, e onde até novembro de 1989 terminava o passeio dominical dos berlinenses orientais.
Nos tempos da RDA a Casa 1 alojava a Biblioteca Pública Alemã, a maior biblioteca científica de Berlim Oriental. E quem, naquele tempo, por pura curiosidade, queria dar uma olhada nesse livro, esbarrava num obstáculo tão intransponível quanto o muro na Porta de Brandenburgo: a "cruz azul". De acordo com a definição do regulamento de leitura, obras assim estigmatizadas expressavam "ideologias fascistas, militaristas, anticomunistas, neofascistas, neocolonialistas e outras não-democráticas" e com isto contradiziam as normas da moral socialista.
Ele só era entregue àquele que pudesse provar um objetivo científico ou profissional.
Com a queda do Muro (9 de novembro de 1989) abriram-se também as então trancafiadas estantes de livros. Os sucessores alemães orientais das duas bibliotecas científicas tradicionais, a Biblioteca Pública em Berlim e a Biblioteca Alemã de Leipzig, realizaram sua "reunificação" com as ramificações alemãs ocidentais do pós-guerra e incorporaram o regulamento de leitura destas.
Ocupados em reunir seus acervos e funcionários, em transpor seus catálogos para modernos sistemas de catalogação eletrônica e em melhorar as deploráveis condições de espaço, eles deixaram nos catálogos as marcas da censura.
Mas a cruz azul e a variação menos rígida do círculo vermelho não foram a primeira proibição da Biblioteca Pública Alemã. Na sua ambição de exterminar das cabeças da população todo o ideário não-socialista, as forças aliadas já haviam ordenado a limpeza das bibliotecas. No dia 15 de setembro de 1945 partiu semelhante ordem do chefe-maior da administração militar soviética.
Caminhões chegados de bibliotecas, universidades e institutos de pesquisa da zona de ocupação soviética foram descarregados na Biblioteca Pública Alemã em Berlim e na Biblioteca Alemã em Leipzig. Com a "lista de literatura a ser selecionada", organizada por eles, os bibliotecários percorreram seus catálogos e estantes. Enquanto as bibliotecas estaduais e municipais ficavam livres de seu velho fardo, enchiam-se os arquivos das duas grandes bibliotecas científicas.
Até 1953, quando foi publicado o último suplemento dessa lista, 25 mil títulos já haviam caído em desgraça.
Anotações como "AE" ("SoM") para arquivo especial e "IP" ("Sp") para biblioteca proibida estigmatizaram os opositores de Stálin –Trótski, Bukharin e Radek–, como também o Anuário do Movimento Operário ou o almanaque da Internacional Comunista. A partir da ansiada lavagem ideológica surgiu uma nova censura, submetida à visão de mundo então dominante, socialista.
O problema de novas aquisições "corrompidas", porém, não estava resolvido. Por mais que pareça esquizofrênico, não se podia nem se queria renunciar à importante literatura ocidental, mesmo se esta contradissesse a própria doutrina. O país destruído pela guerra precisava dela urgentemente para reconstrução da indústria.
Assim, mais da metade dos livros adquiridos pela Biblioteca Pública nos anos 80 origina-se de países não-socialistas. "Por causa da falta de moeda forte, muitas vezes éramos os únicos a ter disponível um livro", diz Daniela Luelfing, diretora da Casa 1. Não foram poucos os que desapareceram na "SLCE" ("ABF"), "Seção para Literatura Científica Especial", como os berlinenses chamavam, como paliativo, a sua biblioteca proibida.
Ms quem decidia que títulos iam parar nos armários proibidos? "Tudo o que pretensamente era contra a paz, a União Soviética ou o marxismo-leninismo, podia ser trancafiado", diz Gottfried Rost, chefe em Leipzig da Biblioteca Alemã, agora unificada à sua correspondente em Frankfurt.
Houve fases diferenciadas. O presidente iugoslavo Tito passou de traidor a aliado, ou da evocação pela unificação alemã seguiu-se a ênfase pela independência. As decisões oscilavam da forma como oscilava a política. Na Biblioteca de Leipzig, afirma Rost, o chefe da seção de aquisições classificava os livros. Uma obra explosiva recebia imediatamente um "procedimento específico". Na Biblioteca Pública o responsável por uma determinada área tinha de julgar se e de que forma o livro deveria ser colocado no índice.
É claro que houve um certo espaço de ação, acha Karl Schubarth, hoje chefe da secção sobre o Oriente da Biblioteca Pública. Como responsável técnico, ele teve de trancafiar, "ao longo de 30 anos, talvez 30 títulos". Muitas vezes se utilizava de um círculo vermelho, o que limitava a utilização, mas não acarretava num arquivamento em separado.
Também em Leipzig, diz Rost, o rumo ideológico era, bem ou mal, interiorizado. Em caso de dúvida, as investigações da direção da Biblioteca e eventuais testes de "funcionários" à paisana cuidavam da medida certa para o autocontrole.
Se a obra era discriminada, o acesso era vedado aos próprios funcionários. Aposentos fechados e bibliotecários especialmente destacados trancafiavam o perigoso saber. A partir de então seria inútil alguém expressar interesse no "Espólio", de Wolf Biermann, na "Psicologia de Massas", de Hermann Broch e no "Discurso pelo Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão", de Max Frisch.
Também informações sobre a luta guerrilheira, sobre a ligação de Bertolt Brecht com Nietzsche ou a filosofia chinesa, sobre a dificuldade de crescimento econômico da RDA só eram acessíveis a um seleto círculo de pessoas: aos membros do comitê central do Partido Socialista Unificado Alemão, a professores de cátedra, organizações de massa e fábricas que pudessem, para a leitura, apresentar uma permissão especial a estudantes que tivessem um atestado assinado pelo diretor do instituto que comprovasse a necessidade científica da leitura.
Hoje quase ninguém quer acreditar que o serviço secreto ("Stasi") pode ter procurado desertores até nas salas de leitura das bibliotecas especializadas. Teria havido possibilidades mais simples, acha Heinz Werner, ex-chefe da Biblioteca Municipal de Berlim, que também aloja ricos acervos científicos: "A Stasi tinha outros problemas e vinha, na pior das hipóteses, para garantir as redondezas, no caso de um evento político no vizinho Palácio da República."
Seu regulamento de leitura –mais liberal que o de outras bibliotecas científicas– atenuava as marcas da censura nas fichas. Naquela biblioteca, afirma a sucessora de Werner, Gabriele Beger, nenhum adulto precisou apresentar uma permissão escrita para ter acesso a um livro: "Bastava uma assinatura no cartão de empréstimo. Com a divulgação desse fato, logo nossos leitores formavam uma comunidade de conjurados."
Muitos bibliotecários alemães orientais também comparam os "armários venenosos" com a perigosa influência da literatura nazista sobre a juventude. Claro que, como confessa Werner, o abuso da censura foi "em parte devastador"; por outro lado, ele teria "recusado emprestar a crianças livros que, por exemplo, estimulam a construção de mísseis."
Um trabalho assim, que acaba em manipulação, é recusado por bibliotecários alemães ocidentais. Isso, dizem, foi o que diferenciou bibliotecas ocidentais das orientais. A liberdade de expressão assegurada pela constituição, ao lado da mídia, proíbem as bibliotecas científicas de deter quaisquer informações aos cidadãos.
As bibliotecas correm o perigo de cometer um delito com empréstimo de textos racistas, nocivos à juventude e enaltecedores da violência, na medida em que limitam a utilização destes às próprias salas de leitura e impedem que sejam fotocopiados. Trata-se de um artifício jurídico, pois quem quer contaminar-se com propaganda nazista chegará com mais rapidez à sua meta por outros caminhos.
Estigmatização ao invés de informação –justamente na RDA, onde à juventude havia sido vinculado o passado alemão sob o auspício ideológico-socialista, essa forma de mediação da história se mostrou contraproducente. Tilo Wendt, assistente de redação num jornal berlinense, fala por muitos alemães orientais quando afirma: "Estou farto de ser educado!"

Tradução de CLÁUDIA CAVALCANTI

Texto Anterior: Cacá Diegues aponta influências
Próximo Texto: Livro sem palavras é o mais vendido no Brasil
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.