São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 1994
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Série resgata intimismo de Rubinstein

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na Antiguidade dizia-se que os livros têm seu destino. Os músicos também. Depois de uma vida da mais brilhante glória e popularidade, Artur Rubinstein (1887-1982) parece, na última década, ter sido relegado a uma relativa obscuridade, à sombra de Horowitz, Glenn Gould ou Michelangeli.
O novo CD faz parte de uma coleção lançada pela RCA como resposta à série "Classikon", da Deutsche Grammophon, resenhada na Folha há alguns meses. A idéia é a mesma: reunir as cem obras mais representativas da nossa tradição, em gravações consagradas, um pouco à maneira das velhas coleções de grandes obras da literatura universal.
A "Basic 100" tem um caráter mais didático e menos "europeu" do que a outra, o que neste caso infelizmente significa que textos e encartes não primam pela sensibilidade.
A comparação entre Rubinstein e Horowitz é a mais esclarecedora. Rubinstein, em vida, foi sempre, dos dois, a personalidade mais esfuziante, um assombro de vitalidade e bom humor, o Picasso do piano. Musicalmente, porém, ele é antes o poeta sensível do que o gênio extrovertido, mais um intimista do que um criador de momentos eletrizantes e grandes formas bem desenhadas. Nosso tempo é o tempo de Horowitz, e as gravações de Rubinstein, hoje, já soam menos como as de um pianista "vivo" do que como as de um representante nostálgico de uma outra idéia de música.
As qualidades de Rubinstein transparecem bem nessa reedição do "Concerto em Dó Menor" e da "Rapsódia Sobre um Tema de Paganini", de Rachmaninoff. Nenhum pianista seria mais adequado àquilo que antigamente se podia chamar de gênio lírico do compositor.
Por muito tempo, em anos de militância musical mais entusiasmada, Rachmaninoff foi execrado como um compositor fora de sua época, um mestre involuntário do kitsch. Mas o kitsch pode ser definido como o que resulta quando a ambição vai muito além de sua realização, e seria, no mínimo, injusto não reconhecer a competência e inventividade de Rachmaninoff na composição de suas obras.
Suas "Danças Sinfônicas" são, com certeza, uma das grandes obras do repertório moderno, sob qualquer critério; e tanto o "Concerto nº 2" (1901) quanto a "Rapsódia" (1934) são composições de enorme apelo e coragem afetiva, sem falar na maestria da técnica.
A "Rapsódia" combina o tema famoso de Paganini com sua imagem especular no "Dies Irae" da liturgia russa. O não menos famoso início do "Concerto", uma simples sequência de acordes, é uma versão de trás para diante do "Prelúdio em Dó Sustenido Menor", de 1892 –duas evidências, entre muitas outras, da engenhosidade do compositor. Cada uma dessas peças sobrevive na nossa memória como uma obsessão –e talvez não haja mesmo outro teste para a sobrevivência musical.
Além das duas peças para piano e orquestra, o CD inclui ainda uma gravação do "Vocalise", cantado com vibrato de época por Anna Moffo. Não há muito o que dizer sobre uma obra como essa: é simplesmente uma das melodias mais lindas que jamais se escreveu. É algo que acontece, com todo o imprevisto e toda a inevitabilidade de um fenômeno da natureza. É o emblema mais concentrado da veia lírica de Rachmaninoff e daquele outro mistério insondável: a alma russa.

Título: Concerto Para Piano nº 2 e Rapsódia Sobre um Tema de Paganini
Compositor: Sergei Rachmaninoff (1873-1943)
Intérprete: Artur Rubinstein (piano), com a Orquestra Sinfônica de Chicago
Gravadora: RCA Victor, série "Basic 100"

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