São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Final Feliz

MOACYR SCLIAR

Em briga de marido e mulher ninguém deve se meter, era o que ele ouvia desde pequeno. Mas era um conselho que não podia seguir.
Em primeiro lugar, porque era policial. E como policial não podia permitir que casais brigassem. Outros guardiães da lei não pensavam assim; que se arrebentem, se matem, diziam, se morrerem não tem importância, são baderneiros a menos para incomodar.
Ele, ao contrário, achava que deveria intervir, chamando as pessoas à razão: não briguem, as coisas se arranjam com bom senso.
Mas não era só isto. Era também o fato de que ele acreditava no casamento. Uma confiança um tanto absurda, reconhecia; afinal, conhecia tantos casais que viviam mal, maridos batendo em mulheres, mulheres vingando-se de maridos. Mas isto, dizia, é porque as pessoas que não sabem mais conviver, esqueceram como é boa a vida em família, o que é o amor.
Quando falava estas coisas, no boteco, todo o mundo ria. Você não passa de um ingênuo, diziam, você não vive neste mundo, você pensa que a vida é novela de tevê, que é filme. E por que não poderia a vida ser como uma novela de tevê, perguntava. Por que não poderiam as histórias ter um final feliz, como os filmes de antigamente?
Era nisto que pensava no dia em que viu o casal brigando. Era uma briga feia, muita gente estava olhando, mas ninguém pensava em se meter –porque evidentemente sobraria para a turma do deixa-disso. Mas ele estava de serviço, e mesmo que não estivesse de serviço, trataria de separar os brigões pela simples razão de que não podia ver um homem e uma mulher se agredindo daquele jeito.
aproximou-se, agarrou-os, com firmeza, mas sem violência. Que é isto, gente, era o que ele ia dizer, não façam uma coisa destas, parem de brigar, este não é um tempo de briga, é um tempo de amor, todos estão confraternizando; vamos lá, abracem-se, beijem-se, é uma coisa tão bonita marido e mulher se beijando, é o que todo o mundo aqui espera de vocês, beijem-se e vocês verão como todos batem palmas, será um final feliz, como o final de novela ou filme.
Isto era o que ele ia dizer, antes que a faca do homem o atingisse na garganta. E as mansas palavras que ele ia dizer não foram pronunciadas. Ele caiu em silêncio e enquanto morria pensava nesta coisa tão bonita, o amor, o amor...

Texto Anterior: Movimento no litoral norte foi 50% maior
Próximo Texto: Efeito FHC reanima cursos de sociologia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.