São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
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Boa sorte, Fernando Henrique

ÁLVARO ANTÔNIO ZINI JR.

"Na sua viagem para Ítaca deseje que sua jornada seja longa, cheia de aventuras, plena de descobertas. Lestrigãos, Ciclopes, o irado Poseidon – não os tema: você nunca os encontrará em seu caminho, conquanto seus pensamentos voem alto, conquanto uma fina excitação incendeie seu espírito e seu corpo. Lestrigãos, Ciclopes, o feroz Poseidon – você não os encontrará, a menos que os traga em suas entranhas, a menos que sua alma os coloque ante de si." C. Cavafy (Ithaca, 1910)

A posse do governo de Fernando Henrique Cardoso é o fato maior deste início do ano e merece ser saudada por seu potencial de renovação. O Brasil prepara-se para um novo ciclo de desenvolvimento e há um bom otimismo no ar. Mas devemos atentar para alguns desafios.
O Brasil atravessou 15 anos angustiantes de 1980 a 1994. Inflação elevada, constante incerteza sobre a economia e a política e a exposição das mazelas que dominam o setor público. É lógico que após tanta frustração todos estejamos querendo ver o país na rota do desenvolvimento, com preços estáveis.
Vamos caracterizar as perdas trazidas por essa crise tomando o produto per capita (isto é, na média, quanto cada brasileiro produz). Se tomamos a renda per capita como sendo 100 em 1980, no final de 1994 esta renda foi de 97,7 (supondo um crescimento do PIB de 5% no último ano): estamos 2,3% mais pobres do que em 1980.
A régua adequada para medir esse número, no entanto, é compará-lo com o que poderia ter sido o produto. Se a renda per capita tivesse crescido 3% ao ano entre 1980-94 (a média que crescemos de 1940 a 1980), no final de 1994 a renda per capita teria sido de 151,3.
Ou seja, cada um de nós –você leitor, seus herdeiros, eu– está, na média, com uma renda 54,9% menor do que poderia estar, se a economia tivesse crescido em sua trajetória normal, ou se os erros do endividamento do final dos anos 70 tivessem sido corrigidos a tempo.
O otimismo que existe na população com relação ao novo governo tem fundamentos. A inflação está baixa, as finanças públicas apresentam um melhor controle, ainda possuímos uma base produtiva de porte (o nono ou décimo parque industrial do mundo) e, principalmente, temos uma cultura que é favorável ao crescimento econômico.
Talvez até mais importante do que isso seja o fato de que o novo governo procurou formar alianças políticas explícitas para poder reformar o setor público. Deixando o sectarismo de lado, será um fato auspicioso se essa aliança política, que vai da centro-direita à centro-esquerda, se puser de acordo em como governar o país.
Mas vamos adiante. A atual calmaria nos índices de inflação ainda está longe de indicar que a guerra da estabilização já esteja ganha. Basicamente a atual calmaria deve-se a alguns fatores.
As contas públicas estão minimamente equilibradas, a introdução da URV, e sua passagem para o real, permitiu um razoável alinhamento dos preços relativos, a manutenção da lucratividade das empresas e uma desindexação moderada. Os diversos compulsórios adotados, tanto sobre a captação bancária como sobre as operações de empréstimo, terminaram se constituindo em fator de contenção monetária.
Por fim, a apreciação da taxa de câmbio e a ameaça das importações também ajudaram. Mas aqui chegamos a um campo problemático, fruto de uma inconsistência nos fundamentos monetários e cambiais.
A apreciação da taxa de câmbio real não se deve a um grande ganho de competitividade do país ou a fatores estruturais da economia, mas ao grande diferencial entre a taxa de juros doméstica e as taxas de juros de curto prazo no exterior.
A não-sustentação no tempo desta combinação está sendo vista no caso mexicano. Parece que o México despertou o deus dos mares revoltos. E, como diz Cavafy, o problema vem de dentro...
Há menos de duas semanas o presidente Ernesto Zedillo parecia no ápice. Tomara posse no início de dezembro e em duas semanas fez aprovar pelo Congresso uma reforma radical do setor judiciário e uma proposta orçamentária que projetava um crescimento de 4% para 1995, inflação também de 4%, além de déficit público zero.
Em 19 de dezembro, os rebeldes zapatistas anunciaram que iriam iniciar nova ofensiva (fato que o governo conhecia). Zedillo, sabendo que as reservas internacionais do país estavam baixas, resolveu usar o fato como bode expiatório e anunciou que deixaria o peso flutuar em uma banda maior do que a anterior, consoante com a liberdade do mercado.
Aí o pesadelo apareceu. Não só o peso desabou, como uma profunda crise de credibilidade se formou. Até 29 de dezembro o peso perdera 40% do seu valor, a taxa de juros subira para mais de 40% ao ano. Os desdobramentos disso, que implicam perdas de capitais significativas para empresas mexicanas, bancos e para investidores estrangeiros, ainda se farão sentir nos próximos meses.
Aliás, vamos notar algo paradoxal. Se algo não segurou o câmbio no México foi sua âncora fiscal. O país era a menina dos olhos dos economistas do FMI, sendo apontado como "o" modelo de ajuste fiscal dos últimos anos. Não só eliminou o déficit, como gerou superávits operacionais significativos.
Com um extenso programa de privatização, acumulou um significativo fundo de amortização, que seria usado para reduzir sua dívida interna de curto prazo (não foi utilizado até então porque pagar a dívida teria um impacto monetário expansionista forte).
Errou onde? Por não ter equacionado seu problema de endividamento de curto prazo, o México viu-se obrigado a pagar taxas de juros elevadas o tempo todo. Taxas de juros altas e cambio apreciado desestimularam a produção interna.
Com a produção estagnada, o governo permitiu formar um déficit em contas correntes de US$ 20 bilhões (8% do PIB), sinal de que o demanda estava superando a oferta. Agora, após a desvalorização, surgirão novas dificuldades fiscais pois o serviço das dívidas está mais caro.
Voltemos para o Brasil. Como o leitor deve ter percebido, apenas o ajuste fiscal e privatização, embora necessários (no nosso caso, uma prioridade), não são suficientes.
O que o exemplo mexicano vem ensinar é que há algumas noções básicas de equilíbrio fiscal, regras monetárias consistentes, taxa de câmbio alinhada com a competitividade do país, e situação de endividamento equacionada, sem as quais não se estabiliza um país.

ÁLVARO A. ZINI JR., 41, é professor de economia internacional da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP e autor do livro "Taxa de Câmbio e Política Cambial no Brasil" (Editora da USP).

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