São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
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Todas as faces de Herbert Caro

ROSANA J. CANDELORO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se estivesse vivo, Herbert Moritz Caro seria amplamente festejado, em Porto Alegre, neste ano que inicia, pela passagem dos 60 anos de sua chegada ao Brasil. Foram seis décadas de significativas contribuições em múltiplas áreas do conhecimento: na música erudita, nas artes plásticas, na crônica jornalística e sobretudo no campo da tradução.
A referência ao intelectual alemão está muito além da efeméride, que coincide com a dos 50 anos do final da Segunda Guerra Mundial, período histórico que forçou a vinda ao Brasil de legítimos representantes da intelligentsia européia.
Todos conhecem um Otto Maria Carpeaux, um Paulo Rónai, um Anatol Rosenfeld. Os três deixaram uma marca estilística, associada a um rigor teórico, inconfundíveis na crítica literária brasileira.
Herbert Caro, por sua vez, é conhecido por muitos apenas como um nome expressivo da arte de traduzir, vertendo obras da literatura universal, de línguas inglesas e alemã, para o português, trabalho esse executado com habilidade e competência.
Neste país desmemoriado, que mantém na obscuridade relevantes nomes na formação da cultura nacional, quem conhece a obra interdisciplinar de Herbert Moritz Caro? Uma dica para os que querem se iniciar na vida e na produção intelectual do judeu alemão é procurar o verbete Caro no "International Biographical Dictionary of Central European Emigrés" (1). Curiosamente, abaixo de seu nome encontra-se o verbete Carpeaux, imigrante austríaco chegado a São Paulo em 1939.

Três mil palavras
Herbert Caro chegou ao Brasil em 9 de maio de 1935, numa época em que o número de refugiados alemães aumentava drasticamente. Logo, a imigração foi restrita pelo governo brasileiro, o que tornou cada vez mais difícil a obtenção da permanência definitiva, imprescindível para que os imigrantes pudessem trabalhar legalmente, assegurando um mínimo de dignidade.
Preparando-se para sua vinda ao Brasil, por três meses Caro teve aulas de português ainda em Berlim. Com seus conhecimentos de latim e de grego, chegou a Porto Alegre com um vocabulário de três mil palavras.
Ele e sua mulher Nina passaram momentos de dificuldade (2). Para manter um padrão de vida razoável, desde os primeiros tempos Nina ministrou aulas de línguas e, mais tarde, chegou a publicar, no Brasil e na Alemanha, livros didáticos sobre o ensino de alemão. Caro, por sua vez, teve de trabalhar no ramo da indústria e do comércio, de 1935 a 1938, até ser contratado pela Editora Globo, como tradutor, dicionarista e pesquisador. Em depoimento à Folha, Bernard Wolff, amigo pessoal de Caro, conta que se lembra do dia em que o intelectual alemão entrou em seu escritório para comercializar fechaduras, todas perfiladas num mostruário.
A partir de 1939, é contratado para integrar, junto a Erico Verissimo, Leonel Valandro e Mário Quintana, a Sala dos Tradutores, iniciativa da Globo, que marcou a época de ouro da efervescência cultural porto-alegrense. Já em 1935, Erico Verissimo inaugura a fase gloriosa da Editora Globo com a tradução de "Contraponto", de Aldous Huxley.
A Sala de Tradutores era constituída de enciclopedistas, inseridos na mais requintada tradição humanista, que ficavam confinados, em uma espécie de "baias" envidraçadas. Também havia uma biblioteca e uma cozinha para os intelectuais conversarem nos intervalos do trabalho e exercitarem suas preferências gastronômicas.
Na época, o poeta Mário Quintana realiza um importante número de traduções do francês, em especial do "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust. Em 1948, passando por momentos difíceis, a Editora Globo vê-se obrigada a fechar sua sala e, com isso, encerra seu período áureo.
Concomitante ao trabalho de tradutor, Herbert Caro firma-se como colaborador da "Revista do Globo", escrevendo ensaios e numerosos artigos para a mesma.

O balconista erudito
A experiência sui generis de Caro como balconista de uma antiga livraria do centro de Porto Alegre –a Livraria Americana– pode ser desfrutada através da leitura de suas crônicas publicadas no "Correio do Povo".
Caro inicia a redação de suas memórias de livreiro, após cinco anos de experiência como balconista e gerente da seção de livros importados da Americana. Mantendo uma intensa correspondência com Erico Verissimo –quando este trabalhava nos EUA–, oportunidade não lhe faltava de submeter suas crônicas ao crivo apurado do amigo distante.
Timidamente, aparecem suas primeiras crônicas, nas páginas do "Correio", encabeçadas pelo título "Balcão de Livraria", que também batiza o volume de 17 crônicas selecionadas, integrando a série "Aspectos", editada pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), em 1960.
Muitas das questões abordadas e das discussões promovidas por Caro –ao longo de dezenas de textos– continuam atuais e revitalizam o debate de hoje. Exemplo disso é o trecho que segue:
"Em minha opinião, não há bastante revistas literárias no Brasil. Há pelo menos uma, que falta, e que poderia ser de grande utilidade para muita gente –livreiros, editores e leitores" (3).
Para divulgar o lançamento do volume publicado, "Balcão de Livraria", Geir Campos, à frente do programa "Movimento Literário", da Rádio do Ministério da Educação e Cultura, apresenta, em uma das noites, a leitura e os comentários da crônica jornalística de Caro. Esse programa foi ao ar em 14 de julho de 1960.
As crônicas mantêm uma veia estilística inconfundível, domínio invejável da língua portuguesa e um humor não raras vezes refinado.

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