São Paulo, sábado, 7 de janeiro de 1995
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Brasil é uma grande exposição de arte 'naif'

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Como é que o Brasil, pátria do joão-de-barro, tolera que milhões de seus cidadãos vivam sem casa, ao relento? Foi o pensamento que me assombrou outro dia, quando, indo à reinauguração, depois de reforma, do Museu de Folclore Edison Carneiro, vi a casa do joão, na entrada da exposição da técnica do barro.
Não tenho mais o Rubem Braga ao telefone para me passar alguma informação de cocheira, ou de ninho, sobre o joão-de-barro, mas arrisco dizer que se trata do passarinho mais evoluído, de mais alto QI do mundo. Comparado a ele o picapau, digamos, herói de tanto desenho animado, não passa de um casca grossa, de bico de ferro e língua córnea, que fura tronco de árvore para suas refeições de larvas e besouros. O joão-de-barro deve considerar o picapau um marginal, ele que é um artista, um arquiteto sofisticado.
Ouçam nosso sábio Rodolfo von Ihering: "Sobre o galho grosso de um árvore isolada ou um poste de telégrafo (...) o casal constrói a grande bola de barro que mede mais de 30 cm de comprimento na base por metade apenas de largura; a altura do edifício alcança 25 cm. A entrada acha-se sempre na face comprida e permite ao pássaro entrar sem se abaixar. Uma parede separa a antecâmara, menor, da alcova; nesta está a cama, feita de ervas secas, cabelos e penas, e aí a fêmea choca."
Só faltam berço e cortinado. Acrescento que eu próprio já vi, numa fazenda fluminense, enfileiradas no reto e comprido galho de uma árvore, as casas de vários joões-de-barro. Tanto que me foi dado observar, não se comunicavam, aqueles condôminos. Entravam nas respectivas casas sem olhar para os lados. E, naturalmente, sem se abaixar.
Nossos gabirus se dobram em dois para entrar nos canos de esgoto em que moram. Nossos sem-terra, que vivemos expulsando das cabanas efêmeras que armam em terras vazias de tudo –menos de donos–, nem cabem em lugar nenhum. Por mais que se abaixem.
Mas voltemos ao joão na sua casa, que ele certamente aprova, do Museu do Folclore, vizinha do palácio ornado de águias em que morreu Getúlio Vargas e onde morou JK, antes da mudança para Brasília. Ali está joão no seu ninho, inventor da mais brasileira das técnicas. João foi o primeiro a se utilizar do barro, que serviu a seguir de material para casa de índio, primeiro, e depois casa de caboclo, onde se pôs a virar alguidar, panela, moringa.
Em nenhum outro país é mais aceitável que no nosso a idéia bíblica de que Adão foi feito de barro. Mais tarde Vitalino Ferreira dos Santos, que nasceu em Caruaru no ano de 1909, começou a fazer de barro o tropeiro e o cangaceiro do seu horizonte e acabou por esculpir a todos nós. Vitalino não aparece entre as técnicas e sim na sala que é singelamente denominada "Arte", na qual se expõem obras daqueles que ultrapassaram o inspirado anonimato do folclore.
E, como nem vou tentar dar uma idéia completa do museu, passo a um outro artista que, ao contrário do que aconteceu com Vitalino, não conseguiu ainda o renome que merece. Chama-se Chico Tabibuia e nasceu no interior do Estado do Rio, em 1939. Homem do campo, lenhador. Em 1982 ganhou um prêmio de escultura no Rio e teve a seguir obra exposta no MAM de São Paulo, e, em exposição coletiva brasileira, no Grand Palais de Paris.
Tabibuia tem um bom estudo de Paulo Pardal dedicado à sua obra estranha e forte. Mas continua na sombra. Talvez porque, ainda que seja quase analfabeto, conceitua sua arte quase como um cubista dos tempos heróicos: "O camarada tem que fazer uma peça para quem comprar quebrar a cabeça para entender". Para mostrar que sabe produzir pura graça ou puro mistério, Tabibuia tem esculturas como "Garça sobre Lagartixa" ou "Canoa com Remador Fantasma".
Mas seu trivial são exus de falos gigantescos, hermafroditas em autocoito ou autofelação. Apaixonado da macumba, primeiro, e depois filiado à Assembléia de Deus, seu erotismo explícito e disforme tem mais a ver com obsessão religiosa que com qualquer outra coisa. Tabibuia teve muitos filhos e declara que gostaria de ter tido 20. Nada de mais. J.S. Bach teve 22.
Vi também bonecos de madeira de Antonio de Oliveira e me lembrei da entrevista que, muitos anos atrás, fiz com ele. Apaixonado por sua cidade natal de Belmiro Braga, ele a recriara inteira em bonecos, casas, igrejas, pracinhas. E apontava, entre os bonecos, os que haviam cometido um crime, ou, digamos, morrido de amor. Antonio era um Proust silvestre.
Agora, declarada minha admiração pelo Museu Edison Carneiro, uma confissão. Museu de arte "naif", ingênua, me deixa sempre aflito. É claro que, no meio da tabatinga, da palha, da lenha, há obras em que o esplendor se manifesta. Como nos clássicos. Mas é claro também que no "naif" a gente sente, em avaliação geral, que ficaram faltando materiais, recursos, estudo. A gente admira, ali, várias peças, mas guarda sempre uma insultante pena do artista.
Nossa admiração está provando que ele é maior do que nós, mas no fundo o lamentamos: coitado, com o mesmo barro fez casa, fez gamela e fez esse anjo arrebatador, que, por mais cuidado que se tenha com ele, não vai durar muito tempo.
E acho que minha aflição, de forma mais ampla e generalizada, vem do fato de que o Brasil inteiro tem muito de uma exposição permanente de arte folclórica. Os atuais curadores da exposição, empossados no primeiro dia de 1995, prometem dar ao gênio criador nacional materiais mais nobres e duradouros. Devemos acreditar neles agora e ficar cobrando deles o tempo todo, pois eles conhecem o valor das palavras. "Naif" é que os novos curadores não são nem um pouquinho.

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