São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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A caça perversa ao dinheiro público

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O moderno administrador público virou paracartesiano. Substituiu o "cogito, ergo sum" (penso, logo existo) sobre o qual René Descartes (1596-1650) compôs seu sistema racional do saber, por outro: "gasto, logo existo".
É menos ousado que as alternativas propostas por Aldous Huxley em "Sem olhos em Gaza" ("caco, ergo sum" ou "futuo, ergo summus"), mas muito mais perigoso para o bolso do contribuinte.
O administrador público gastador é personagem central no livro "Tant et Plus!" (Bernard Grasset, 1992 e Livre de Poche", 1993), de François de Closets. Personagem tanto mais importante (e menos responsabilizável), quanto maiores sejam os gastos que autorize.
O texto de Closets parece escrito para retratar o destino do dinheiro público brasileiro, já na primeira frase do primeiro capítulo: "A corrupção! Eis o último 'mal francês', aquele que ocupa o noticiário, aflige a opinião pública, alimenta as conversas".
Na administração direta e nas estatais, joga-se dinheiro pela janela. Bilhões. Tudo se esgota nos programas mal gerenciados, na burocracia devoradora. As piores extravagâncias, as incompetências mais escandalosas fingem justificar-se com o apelo a grandes valores sociais. A semelhança de situações é impossível de ignorar.
Os excessos são vergastados, ainda que com algum exagero. São dez capítulos a mostrarem como o avião "Rafael" e o projeto espacial "Hermès" sacrificaram bilhões de dólares sem benefício para o povo. A televisão oficial consumiu milhões. Nem a música escapou.
François Mitterrand, presidente da França, é amigo de Guy Ligier, desde há muito. Pois Guy Ligier projetava ser campeão do mundo dos construtores de carros de Fórmula 1 em 1993 ou 1994.
Com excelentes instalações (pagas com dinheiro do contribuinte), com 50 motores V-10 Renault, com orçamento de quase 40 milhões de dólares, Ligier seduziu os burocratas com a previsão de bons retornos para a indústria francesa.
Pediu e obteve mais uns 70 milhões de dólares oficiais. Era de esperar, para montantes tão elevados, que houvesse uma relação direta de custo/benefício. Esperança frustrada: Ligier continua sem títulos.
"É muito pequena a diferença entre a corrupção, propriamente dita, e a apropriação pessoal de bens coletivos e o desperdício", anota o autor. A tendência crescente dos administradores é a de se considerarem usufrutuários, e não gestores, dos interesses nacionais, o que explica a extensão da loucura ao futebol, com a novidade dos patrocínios.
Quando empresas estatais e bancos oficiais assumiram o papel de principais patrocinadores, sem resultados compatíveis com os extraordinários gastos públicos, validaram a crítica de Closets contra o desperdício.
A França tem os seus leões da intelectualidade. Aparecem nas revistas e nos jornais. São personagens constantes nos "talk-shows" e nas colunas sociais. Dominam a literatura, o teatro, a música, as artes plásticas e afastam concorrentes com o boato e a malícia.
Acontece que os leões da intelectualidade têm demonstrado, na áspera crítica de Closets, grande habilidade (sob diversos disfarces) no primeiro dos esportes nacionais: a caça ao dinheiro público.
Pessoas e grupos controlam a distribuição, sacrificando a democracia feita por despesas para o povo, pelo povo, com o dinheiro do povo.
O livro trata, no capítulo quarto, dos efeitos do esoterismo da música contemporânea sobre o gasto oficial. O esoterismo gerou "a incompreensão entre a linguagem de uns poucos (com acesso fácil ao dinheiro público) e o ouvido da maior parte das pessoas."
A difusão da música de vanguarda, escreveu P. M. Menger, na "Revue Française de Sociologie", em 1986, depende "da ajuda pública para mais de 90% de seu orçamento."
François de Closets liga Pierre Boulez, o mais conhecido regente de orquestra francês, a esse contexto. Boulez surgiu como um vanguardista da música moderna, junto com outros que alcançaram, com a fama, acesso aos cofres do Estado.
Os agentes do poder não tinham como distinguir entre a música hermética de qualidade e a não-música. Os criadores dos dois tipos não agem sozinhos. Têm seus grupos.
Nesse quadro, uma personalidade forte se impõe como interlocutor com o poder. Segundo Closets, foi o caso de Boulez.
Depois de brilhante carreira como regente, fora da França, Boulez voltou a seu país. Tornou-se o príncipe da "intelligentsia" musical. Reuniu pessoas de sociedade e compôs com elas poderoso grupo de pressão.
A princípio reprovou, mas, mudando de idéia, influiu na construção da Ópera da Bastilha, onde foram gastos 500 milhões de dólares (o máximo do desperdício para Closets) para uma casa com 5.000 lugares, que abriria o canto lírico ao povo. Este, todavia, continuou distante.
François de Closets não é otimista quando discute a possibilidade de melhora. As instituições da burocracia moderna geram o desperdício. Por outro lado, os que se queixam da imoralidade pública, silenciam se conseguem participar dela.
Ele conclui, porém, que as sociedades, "assim como os indivíduos, não podem escapar a seu destino. Elas não têm escolha senão entre lutarem eternamente contra suas próprias perversões ou simplesmente perecerem."

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