São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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Feliz Ano Novo, Ocidente

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por outro lado, o ministro francês das relações estrangeiras, Alain Juppé, declarava recentemente que excluir a Turquia da Europa seria um erro político e estratégico. É clara a intenção (não só francesa) de favorecer a integração na Europa do atual governo turco, herdeiro da tradição kemalista, com suas simpatias pelo Ocidente. Aparentemente todos gostariam da presença, às portas do continente, de um estado muçulmano moderno, que pudesse parar e filtrar o integrismo. Ironia da história: o antigo império otomano, cujo expansionismo no passado ameaçou por todo lado a cristandade européia, deveria se tornar assim o último bastião contra o próprio Islã.
Perigosa pureza
Dir-se-á, com razão: não contra o Islã, mas contra o integrismo e o terrorismo. Ora, a questão desta distinção está na ordem do dia, neste fim-de-ano. Fogo de artifício conclusivo: o drama interno da Argélia regurgita na cena internacional com o sequestro do airbus da Air France.
Existem a este respeito duas posições fundamentais. A primeira consiste em considerar o terrorismo islâmico como uma aberração quantitativa, comparável a qualquer fanatismo. Resumo desta posição: Bernard-Henri Lévy, em seu livro recente ("La Pureté Dangereuse", Grasset), convida a defender a cultura ocidental contra toda crença que, postulando ou procurando uma originária "perigosa pureza", se torna fanática.
A segunda posição consiste em considerar que, ao contrário, há uma relação intrínseca entre terrorismo islâmico e Islã. Não, evidentemente, que os islâmicos sejam todos terroristas, mas haveria uma diferença qualitativa entre cultura islâmica e cultura ocidental. O terrorismo islâmico seria a expressão desta oposição, e uma forma extrema (mas consequente) de resistência a uma integração indesejada e talvez impossível.
Sumariamente, a diplomacia norte-americana está na primeira posição e a francesa na segunda. A diferença apareceu exemplarmente quando, poucos meses atrás, o ministro do Interior francês, Charles Pasqua, pediu que os Estados Unidos tomassem providências para neutralizar os militantes argelinos da Frente Islâmica de Salvação refugiados nos EUA. A FIS não sendo, embora integrista, um grupo declaradamente terrorista, os EUA responderam que nada podiam neste sentido. Pasqua, ao contrário, parecia acreditar que qualquer islâmico fosse um integrista em potência e que qualquer integrista fosse virtualmente um terrorista.
A primeira posição é evidentemente mais elegante. Nela, a cultura ocidental se expressa em toda sua ambição universalista: não haveria diferenças culturais radicais, só crenças diferentes. Estas se tornariam patógenas quando pretendem se impor como reguladoras exclusivas da convivência social. Deste ponto de vista, aliás, um terrorista islâmico estaria na mesma que, por exemplo, um antiabortista norte americano que sai matando médicos e enfermeiras.
Palmatória pública
A segunda posição é mais humilde, pois reconhece que, apesar das ambições universais de nossa cultura, há outras, diferentes, cuja integração talvez não esteja ao nosso alcance.
Ora, o Islã implica e pede uma coesão de crença religiosa e coisa pública própria de uma sociedade tradicional e pouco compatível com a idéia ocidental de indivíduo autônomo em sua consciência. Neste sentido, o islamismo é integrista. Mais: por fazer coincidir o fiel e o cidadão, ele facilmente pode acabar excluindo da cidadania e finalmente da humanidade quem não seria fiel. Em outras palavras, por sermos infiéis, somos todos, enquanto ocidentais, indistintamente, vítimas potenciais de assassinatos com os quais Alá simpatiza.
Por exemplo, a FIS criticou o sequestro assassino do airbus da Air France pelo Grupo Islâmico Armado, se dissociando. Isso pareceria dar razão à primeira posição (vejam: os islâmicos, mesmo integristas, não são terroristas). Mas a crítica se formulou assim: "Tomar inocentes como reféns e, entre eles, muçulmanos fiéis, para pedir aos infiéis a liberação de presos e dos chefes da FIS, é uma ação contrária à religião..." Entenda: se no avião não houvesse nenhum muçulmano, fazê-lo explodir nos céus da França seria ótimo. Deste ponto de vista, o sonho da Turquia como bastião é uma ilusão. A coisa foi bem lembrada, no 30 de dezembro, por uma bomba destinada a dar as boas-vindas em Istambul aos turistas infiéis.
Fraqueza perigosa
Dir-se-á que o Islã pode mudar. Sem dúvida. Mas, no entanto, mesmo e sobretudo uma cultura como a nossa, fundada na tolerância, deve conseguir reconhecer seus inimigos, sem que isso constitua uma contradição ou uma culpa. Os inimigos são aqueles, por exemplo, que não professam os valores da liberdade do indivíduo, não aceitam sua capacidade de juízo moral acima da lei coletiva etc.
Invocar a idéia pela qual a tolerância não poderia nunca ser intolerante é uma estúpida extensão de um paradoxo lógico ao campo da política e da cultura. E é uma escolha que acarreta uma fraqueza perigosa. Assim, por exemplo, o Ocidente, em nome de sua tolerância e dos direitos humanos, oferece asilo a integristas e terroristas que fogem da Argélia, mas cujo inimigo é o próprio Ocidente.
À força de nunca reconhecer inimigos, mas só crenças diferentes em princípio todas toleráveis, esquecemos, ou –pior ainda– nos envergonhamos dos próprios valores positivos –autonomia do indivíduo, liberdade da consciência etc– que permitem nossa tolerância. Perdemos a capacidade de invocá-los ou defendê-los porque nos parece que nada deva estar acima da multitude das crenças variadas –todas respeitadas– que convivem em nossa cultura.
Como consequência de nossa tolerância, temos assim a impressão de viver em um deserto moral, um vale-tudo. Justamente as crenças se precipitarão para ocupar o lugar de valores que não sabemos mais reconhecer como tais; nos tornaremos crentes, fiéis ou magos. Porque não islâmicos?
Isso, estava na imprensa neste fim-de-ano: a incapacidade de reconhecer uma cultura como inimiga, por não saber mais quais são os valores da nossa, e, por outro lado, o papa homem do ano na capa da "Time". Ou então –o que dá exatamente na mesma– horóscopos para 1995.
P.S. - Com a ajuda de gendarmerie francesa, os terroristas argelinos se foram encontrar Alá. Acho ótimo assim. Embora me pergunte como Alá aguenta a companhia de quem erotiza a morte ao ponto de pensar merecer o paraíso pelo assassinato.
O sequestro do airbus da Air France em Alger, começado pela manhã da vigília e, resolvido na tarde do dia 26 de dezembro, deu lugar, na imprensa como na televisão, a matérias no mínimo menos piegas.

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