São Paulo, sexta-feira, 13 de janeiro de 1995
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Escritor disseca as contradições cariocas

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

As notícias sobre o Rio de Janeiro, com ou sem Exército nas ruas, são sempre assustadoras. Desconfio que muitos paulistas ficam secretamente felizes a cada relato de violência, de sequestros, de tráfico e de tiroteios.
Sempre tivemos certo complexo de inferioridade frente aos cariocas. Pouco importa nosso dinamismo econômico, o fato de que aqui se trabalha etc. etc. Foi Nelson Rodrigues, creio, quem disse que a pior forma de solidão é a companhia de um paulista. A frase é insultuosa, mas até mesmo os paulistas sabem que tem um fundo de verdade.
E a beleza do Rio é tão grande que quem mora em São Paulo se sente injustiçado. Vinga-se, simbolicamente, através dos traficantes e sequestradores que infernizam a cidade.
Talvez só os gaúchos gostem autenticamente dos paulistas. Rio Grande do Sul e São Paulo têm certa tradição de separatismo.
Devo ser um paulista degenerado. Não só adoro o Rio, como reconheço em seus habitantes uma espécie de superioridade existencial, uma inteligência, uma graça que não somos capazes de atingir. Até os nomes das lojas e butiques são, no Rio, mais criativos do que em São Paulo –onde impera a mania besta de "Queijo, Vinho e Cia."; "Patê, Pão e Cia.", "Pizza, Macarrão e Cia.", ad infinitum.
Instalou-se em São Paulo uma churrascaria chamada "Porcão". Vi na hora que só podia ter sido invenção de cariocas –só eles para ter, com a língua portuguesa, relações tão livres e irônicas.
O Rio teve mais contatos com a metrópole, com Lisboa, do que nós, paulistas. Teve, talvez, um sentido linguístico mais refinado graças a isso. Dizem que os bandeirantes paulistas mal falavam português –misturavam tudo com tupi-guarani.
Já os gaúchos intensificam a linguagem, os regionalismos. Não investem na loquacidade, mas na ênfase da frase –como se estivessem, em cada exclamação, demarcando nossas fronteiras territoriais.
Voltando ao Rio de Janeiro. Hoje em dia, a cidade vive uma situação ambígua. De um lado, entrega-se ao visitante, com paisagens espetaculares. De outro lado, recolhe-se, esconde-se, no medo de assaltos, nos túneis, nos vidros fumê, no ar-condicionado dos hotéis protegidos por agentes de segurança.
O Rio atual encontra, na obra de Armando Freitas Filho, seu poeta. Leio o último livro de poesias que ele publicou: "Números Anônimos" (ed. Nova Fronteira).
Trata-se de um poeta difícil, que não prodigaliza encantos à primeira leitura. Sua poesia é violenta, ofegante, crispada. Sinto que reflete um pouco essa contradição carioca entre beleza, espetáculo e recolhimento, defesa, ameaça.
Não é de agora, não é por alguma espécie de oportunismo sociológico que a poesia de Armando Freitas Filho se mostra violenta, dura, contundente. Este poeta, com mais de dez livros publicados, sempre gostou de falar de tiros de revólver, socos, escopetas, tabefes.
Poeta do Rio, poeta do calor e da violência. Armando Freitas Filho publica "Números Anônimos" numa conjuntura especial, favorável à recepção de sua obra de um ponto de vista jornalístico.
Verão e violência aparecem, explícitos, nestes versos: "Rock, samba, funk cabeludo/ ou uma trilha para a guerra:/ escopetas, de Sol a Sol sempre/ no último furo, fuzilando."
Ou ainda: "... um morto p/hora/ no chão arrepiado/ por montanha e mar:/ é o Sol que assalta/ na mão grande e arrasta/ o rodo no que sobrou/ tocando o terror/ no ar livre de Deus."
A idéia de um verão permanente, imóvel, hostil –nada condizente com a sensação de amenidades tropicais– está presente em outro poema: "Dia de pedreira que não passa./ 11 e picos, Sol e aresta, árduo/ sem degraus/ acavalado com o vento (...)"
Trata-se de um poeta que se sente ameaçado pelo ambiente. Cuja violência verbal, compondo versos assimétricos e secos, aparece como reação à violência alheia, seja da natureza, seja da sociedade.
Não é só de verão e de crimes que é feito este livro de Armando Freitas Filho. Noto, neste artigo, apenas a presença de uma temática de interesse vulgarmente jornalístico. As coisas, neste livro, são mais sutis, mais complicadas e problemáticas. Por falta de espaço, retomo o assunto na semana que vem.

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