São Paulo, sexta-feira, 13 de janeiro de 1995
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A redescoberta da roda

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Quantas civilizações se sucederam na Mesoamérica! Olmeca, zapoteca, teotihuacan, maia, tolteca, asteca... Nenhuma, entretanto, se sustentou. Houve sempre um bloqueio, um limite, que elas não conseguiram ultrapassar.
O amadurecimento intelectual é atestado pelas realizações em campos tão diversificados como as artes, a astronomia, a arquitetura e certos setores da agricultura, tais como melhoria genética, irrigação, plantio. Não obstante, essas civilizações pereceram precocemente, e a causa única parece ser a falta de desenvolvimento tecnológico.
De fato, há como traço comum a todos os povos da Mesoamérica pontos cruciais de precariedade tecnológica. A metalurgia se restringiu ao cobre, ao bronze e a metais nobres, nunca se estendeu ao ferro. A complexa e ineficaz escrita hieroglífica se limitou ao uso cerimonial e religioso.
Sem tração animal, a roda jamais foi usada em transporte. Nenhuma outra aplicação prática da roda parece ter existido. O único vestígio é de seu uso em brinquedos, em cães de madeira puxados por crianças, como fazemos ainda hoje com cavalinhos de pau.
O enigma reside nessa homogeneidade. Culturas diversas, contemporâneas ou em sucessão, mas sempre com as mesmas deficiências apesar da evolução cultural inquestionável. Todas com o mesmo destino. Deve ter havido uma causa comum. Esse fator determinante talvez tenha sido a ausência de animais domesticáveis, adaptáveis à tração.
A hipótese corrente de que a causa teria sido o isolamento não se sustenta. Quando essas técnicas foram desenvolvidas na Mesopotâmia, no Egito, na China, o isolamento era tão elevado quanto entre Monte Alban, Teotihuacan e as cidades maias contemporâneas. E Teotihuacan era mais populosa que qualquer cidade européia sua contemporânea, ou mesmo asiática.
Os astecas domesticaram o peru e o cão, ambos consumidos como alimento. Os incas criaram a alpaca e a vicunha pela lã e o guanaco e a lhama como carregadores de pequenas cargas para pequenas distâncias. Mas esses camelídeos nunca foram animais de tração. Como consequência, essas culturas nunca usaram roda.
Sem a convivência cotidiana com a roda, a mecânica não se desenvolveu. Polias, engrenagens, sistemas de redução, enfim todas as formas de máquinas simples. Também a roda d'água, o moinho de vento, a roda de fiar etc. deixam de existir.
Mais importante ainda foi a ausência da roda para a estagnação da metalurgia. O que distingue o ferro do bronze é a resistência do primeiro ao desgaste devido à fricção. Sem rodas e sem tração não há partes móveis, não há fricção, não há necessidade imediata do ferro. O pulo tecnológico que consiste na redução do óxido de ferro nunca se tornou necessário. E com isso o homem da Mesoamérica ficou destituído também da siderurgia.
Um pouco mais complexa é a correlação entre a ausência da roda e a precariedade da escrita na América pré-colombiana. Antropólogos são unânimes em reconhecer o comércio como principal motivador da difusão e melhoria da escrita. O controle de estoques, a contabilidade das trocas exigiam uma escrituração indelével e acessível, um registro permanente, imutável e compreensível. Uma escrita prática, enfim.
Sem a roda e, portanto, sem o transporte de mercadorias em quantidades e a distâncias significativas, sem um comércio expressivo, uma grafia eficaz e simples não se desenvolveu.
Podemos assim concluir que a estagnação a que foram condenadas as diversas culturas da Mesoamérica decorreu da falta de desenvolvimento de técnicas básicas, principalmente da metalurgia, da mecânica e da escrita. E que essas técnicas tiveram seu desenvolvimento bloqueado pela falta de convivência desses povos com a roda.
Esse dispositivo por sua vez não teve seu uso estimulado devido à ausência na América de animais adequados à tração. É, pois, possível atribuir o fracasso das culturas americanas, em comparação com suas "contemporâneas" na Ásia, Africa do Norte e Europa, a um único fator exógeno, a inexistência de bovinos e equinos.
Pois bem, a percepção de que há tecnologias básicas, fundamentais para a consolidação econômica de uma nação, não é novidade. Já no início desta "Nova República", ainda na neblina turva da derrota do movimento das Diretas-Já, alguns técnicos incluíram no programa de governo de Tancredo Neves menção a um conjunto de tecnologias que, em nossos tempos, teriam o papel essencial que teve a roda, nos primórdios da civilização.
Assim foram identificadas a informática, a engenharia genética, a química fina, novos materiais e mecânica e ótica de precisão. A convicção era de que seria uma responsabilidade maior do Estado assegurar a capacitação nacional nestes setores. Principalmente porque qualquer atividade produtiva, qualquer aplicação tecnológica em qualquer campo técnico, dependeria no futuro de competência naqueles campos básicos.
O México, berço da maioria das grandes civilizações pré-colombianas, acaba de demonstrar que não aprendeu as lições da história. Continua a excluir a roda de seu cotidiano. Não é com Naftas (ou com Mercosuis) que se constrói uma economia.
É preciso conviver com a roda. Empurrá-la morro acima, dia após dia, como Sísifo, obstinadamente. Não há atalhos. As nações pré-colombianas não puderam desenvolver tecnologias básicas devido talvez à ausência de motivação e percepção decorrentes do uso da roda porque àquela época não havia animais de tração no continente americano.
Hoje, o Brasil também não desenvolve as tecnologias básicas atuais. Certamente não é por falta de bovinos, de equinos e muito menos de muares.

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