São Paulo, sábado, 14 de janeiro de 1995
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Confusão à mesa; Os anéis de Gardel

JOSUÉ MACHADO

Confusão à mesa
Em reportagem sobre o ataque de bandidos à delegacia de Piedade, no Rio de Janeiro, o jornal publicou o seguinte:
"Também teriam saído para comer o detetive Aloísio Joaquim e um carcereiro."
Quem comer quem ou o quê?
Não fica bem escrever assim. Principalmente nestes tempos de descrença na espécie humana. Descrença que nossos políticos e juízes se esforçam tanto para eliminar. Além disso há gente que só pensa naquilo. Não fica bem escrever tais coisas. No mínimo por causa da confusão. O que vai pensar do jornal uma senhora de respeito? Trata-se de um caso de desbragada antropofagia? Ou de coisa pior, bem pior?
Nada disso. Trata-se apenas de uma infeliz colocação irregular, batizada pelos especialistas de "anástrofe", belo nome. Do grego, inversão (no bom sentido). Anástrofe é o nome da inversão de termos da oração, isto é, uma troca-troca eventual de lugares entre sujeito e verbo ou entre verbo e complementos. Não constitui erro, mas às vezes, como nessa, dá resultados duvidosos.
No caso da notícia, o anastrófico computador ensandecido jogou o sujeito da oração lá para trás, dando aos leitores apressados e maliciosos –que infelizmente não são poucos– uma falsa idéia das coisas. A ordem que tornaria a oração digerível por qualquer pessoa de respeito seria a seguinte:
"O detetive Aloísio Joaquim e um carcereiro também teriam saído para comer."
Na verdade, "comer" é palavra um pouco rude, com uma leve carga animalesca, às vezes até chulamente libidinosa, que poderia ser substituída por "jantar" nesse caso. A menos que o computador, preconceituoso, imagine que policiais são incapazes de jantar civilizadamente com o guardanapo ao colo, as taças alinhadas –água e vinhos– e os talheres convenientes, batendo um bom papo sobre a vida.
É preciso paciência com os computadores, que vivem cansados de tanto trabalhar sem o consolo de uma grevezinha.

Os anéis de Gardel
Num comentário de jornal sobre um velho filme de Carlos Gardel, "El Dia que me Quieras", descobre-se o seguinte trecho:
"Vestido impecavelmente, de casaca ou no máximo de paletó e gravata, usando palhetas ou chapéis de aba larga, sorrindo sempre..."
É provável que o redator tenha tentado dizer "...de casaca ou no mínimo (pelo menos) de paletó e gravata,...", por ser claro que casaca costuma ser mais do que paletó e gravata ou camiseta e calções. Uma distração, provavelmente do computador.
Distração também foi o plural de chapéu, que, só por momentânea obliteração dos sentidos do redator ou por safadeza do computador, saiu o pândego "chapéis". Por certo analogia auditiva de chapéu com anel. Do mesmo modo não convém dizer nem escrever "degrais", contaminação evidente do plural de jornal, bacanal etc.
Culpa do vício oral (no bom sentido) paulista de transformar o "ele" final em "u". Anel, anéis, jogral, jograis, degrau, degraus, chapéu, chapéus. Por enquanto.
Poste escrito – Na coluna publicada no dia 30 de dezembro, "Eta ano bom!", faltou a explicação de que "eita!" é variante da interjeição "eta!" em algumas regiões, principalmente do Nordeste. Quem estiver muito eufórico, portanto, pode olhar para o espelho e exclamar feliz "eita-ferro!", "eita-mundo!" (Minas), "eita-pau!", interjeições também designativas de alegria e incitamento.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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