São Paulo, segunda-feira, 16 de janeiro de 1995 |
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Médicos despreparados encarecem saúde
GILBERTO DIMENSTEIN; ALEXANDRE SECCO
"Os médicos mal-qualificados apelam para muitos exames complementares e encarecem o serviço", diz. Jatene analisa a distorção provocada pelo uso de novas tecnologias na área de saúde e os investimentos em medicina preventiva. A tecnologia facilita os diagnósticos, mas torna os profissionais de saúde menos capazes de resolver os problemas sozinhos. "Na maior parte dos casos você não precisa usar tecnologia", afirma. Para o ministro, discussões em torno de investimento em medicina preventiva são "falsas e fora de propósito". "Salva vidas, mas aumenta o custo", diz. Ele defende programas de saneamento básico para reduzir os índices de mortalidade infantil e afirma que não tem planos de disputar eleições. Leia os principais trechos da entrevista: Folha de S.Paulo - Como o senhor analisa o estado de saúde do brasileiro? Adib Domingos Jatene - Eu costumo considerar, sob o aspecto didático, o que eu chamo de saúde propriamente dita e o que eu chamo de doença. A saúde tem setores que vão muito bem. Nós eliminamos a poliomielite e conseguimos resultados extraordinários no sarampo. Mas voltou o cólera, que é uma diarréia das mais fáceis de curar. Só que, mesmo aí, nós não tivemos o milhão de casos que se esperava, com milhares de mortes. Folha - É uma doença fácil de curar, mas não deixa de ser grave. Jatene - O problema do cólera é saneamento. É água encanada e tratada. Nós fizemos uma urbanização equivocada, trouxemos para a periferia das grandes cidades uma enorme população. O que nós precisamos fazer é colocar água em um nível que atinja 90% da população. O Brasil hoje tem 66%. Folha- Então se o sr. tiver que cumprir a promessa do presidente de acabar com a mortalidade infantil, que é o mais grave sinal da deterioração social, o ministério precisa de água? Jatene - Eu é que preciso de água. Folha - Quer dizer que o ministério hoje é incompleto para realizar sua tarefa. Jatene - Não, não é o ministério. Não é este ministério que tem que fazer água, ele tem que se juntar aos outros que atuam na área para conseguir fazer água, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Na região Norte, 41% da população têm água. No Nordeste, 48%. Este é o nosso problema. Folha - Mas esse é um problema de decidir em que áreas investir no Brasil. Jatene - É. Nós tivemos uma época em que investimos em prédios e coisas que não eram fundamentais. Folha - E o governo tem as informações para decidir onde investir? Jatene - Os indicadores têm que ser buscados. A decisão na área administrativa se assemelha à terapêutica na área médica: se eu erro o diagnóstico, eu erro o tratamento. Já chamei a atenção para o problema na área de hospitais. A construção deles era aleatória. Folha - É como tratar o doente sem saber o que ele tem... Jatene - É claro. Precisamos criar mecanismos que obriguem os municípios a fornecer os dados. Folha - O programa de governo promete investimento anual de R$ 80 por habitante na área de saúde. Hoje, o investimento é de R$ 48. Vai dar para cumprir? Jatene - Eu já trabalhei com R$ 35. Vou lutar por R$ 200, mas acho que a meta de R$ 80 é real. Folha - Como o governo pode estimular os servidores e a melhora da área de saúde? Jatene - O problema é o tipo de estímulo. Salário é importante, mas não é fundamental, você precisa condições de trabalho e de ambiente. O desenvolvimento só faz sentido para beneficiar a vida das pessoas, não para ter lucro, para fazer a economia crescer. Folha - A saúde sempre será muito cara para o governo... Jatene - Quando você domina as doenças infecciosas e parasitárias e aumenta a expectativa de vida da população, você vai mudando o perfil epidemiológico. Eu tinha um quadro de doenças infecciosas e parasitárias e agora eu tenho um de doenças crônico-degenerativas, o que é incomparavelmente mais caro. Ao mesmo tempo, você começa a desenvolver tecnologia de diagnóstico. Os equipamentos são mais desenvolvidos e eficientes. Só que, na maior parte dos casos, você não precisa usar essa tecnologia. Mas, uma vez que ela é incorporada, ela é usada. No Canadá eles falam isso. A tecnologia que você incorpora é uma fonte de despesas. Então, no Canadá, eles controlam estritamente os equipamentos. Folha - Então o sr. defende investimentos em medicina preventiva, a simplificação da medicina? Jatene - É também isso. Mas medicina preventiva também é alimentação, o que significa salário. Medicina preventiva é água tratada e encanada. Agora, você não pode deixar de tratar o doente e o tratamento da doença é mais caro mesmo. Você muda o perfil, mas não muda o custo. Fazer medicina preventiva para diminuir o custo, isso é um equívoco. Folha - Não para diminuir o custo, mas para salvar vidas. Jatene - Salva vidas, mas aumenta o custo. Essa discussão é falsa e absolutamente fora de propósito. Folha - Como professor, o senhor está preocupado com o nível do aluno que sai da faculdade de medicina? Jatene - Muito. Já sugeri aos conselhos regionais de medicina que fizessem um exame antes de inscrever o médico no conselho. Nós não temos vagas de residência para todos os que se formam. Folha - Quer dizer que muitas pessoas estão correndo riscos? Jatene - Não. Significa que essas pessoas que não são qualificadas apelam para muitos exames complementares que encarecem o serviço. Esse é o maior problema. Folha - Mas, se o médico é despreparado, as pessoas correm riscos. Jatene - Todo mundo corre risco. Nos Estados Unidos, em qualquer lugar. Folha - Nos Estados Unidos existem processos judiciais, os médicos são mais atentos. Jatene - Só que eles têm muito medo de um processo e a medicina norte-americana tem muito pouca criatividade hoje. Folha - Mas o processo é uma vantagem em favor do paciente. Jatene - Isso é o problema ético da profissão. Deveríamos estimular os médicos a deixar de encarar a medicina como um negócio e passar a encará-la como um serviço. A medicina tem duas características que são fundamentais: o vínculo e a responsabilidade. O sistema que criamos rompeu essas características. Folha - A medicina no Brasil avançou tecnologicamente e involuiu eticamente? Jatene - Que a ética já foi melhor, foi. O compromisso diminuiu. Em 79, eu enfrentei a primeira greve de médicos. Disse que o médico estava sendo transformado em profissional assalariado e ninguém deveria se surpreender se ele se comportasse como tal. Folha - Sua visão da carreira de médico é a do sacerdócio... Jatene - Quando você cuida de pessoas que vão seguir o que você diz, essa profissão não pode ser uma profissão puramente para ganhar dinheiro. Folha - Com a inflação saindo do noticiário, o desempenho do governo será avaliado por suas realizações nas chamadas áreas sociais. O senhor está consciente dessa responsabilidade? Jatene - Claro. Costumo dizer que você não assume esses cargos com euforia. São posições que você assume com preocupação. Folha - O sr. já está sendo lembrado como eventual candidato para as próximas eleições presidenciais. Como o sr. vê esse tipo de lembrança? Jatene - Eu já tenho 65 anos e empolgação, para mim, é totalmente secundária. Até mesmo para essa eleição não faltaram pressões para que eu me candidatasse a qualquer coisa. Não é minha vocação. Não tenho o perfil adequado. Texto Anterior: A autonomia dos poderes Próximo Texto: Knoplich culpa baixos salários Índice |
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