São Paulo, quinta-feira, 19 de janeiro de 1995
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Literatura decifra a psique dos sicilianos

AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O senhor acredita mesmo, senhor Chevalley, que o senhor é o primeiro a querer empurrar a Sicília para o fluxo da história universal? Quem sabe quantos grandes personagens do Islame, quantos cavaleiros de Rogério, o Grande, quantos escribas dos Svevos, quantos barões de Anjou, quantos legistas do Católico já conceberam essa mesma bela ilusão; e quantos vice-reis espanhóis, quantos funcionários reformistas de Carlos 3º. Quem os conhece mais? A Sicília quis continuar dormindo, apesar de tantas exortações..."
É assim que dom Fabrizio Salina, o grão-senhor de "O Leopardo", o famoso livro do príncipe Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1897-1957), começa a explicar a um funcionário piemontês que viera insistir para que ele aceitasse a nomeação de senador do novo reino da Itália unificada (1860), o porquê de sua recusa.
Na motivação de sua grandiosa indiferença está, quem sabe, toda a história da Sicília: a Sicília dos gregos, dos romanos, dos bizantinos, dos árabes, dos normandos, dos "vespros", dos aragoneses e dos vice-reis da Espanha, dos Bourbons e dos Savóia, dos "fasci" socialistas e da Máfia.
Se acreditarmos que das tantas formas de verdade a mais "verdadeira" é a da arte que decifra a realidade simplificando-a ou obscurecendo-a até atingir sua expressão privilegiada, poderemos acompanhar, nas grandes obras da literatura siciliana, os matizes e as dobras dessa indiferença.
Ela se revela, por exemplo, no fatalismo de "I Malavoglia" (Os Malavoglia), protagonistas da obra-prima de Giovanni Verga (1840-1922), no relativismo do discurso dos personagens de Luigi Pirandello (1867-1936), sempre atentos, com a inteligência formal dos sicilianos, a perceber os pontos fracos de uma argumentação contrária para virá-los a seu favor.
Ela está no isolamento histórico e geográfico dos excêntricos habitantes das vilas e das cidadezinhas do mundo de Luigi Capuana (1839-1915), como também está nos "causos normais" da camada social dos "borghesi", os camponeses abastados de "La Nana" (A Anã) de Navarro della Miraglia (1838-1905), que assim caracteriza um deles, Rosolino Cacioppo, casado com uma mulher que só ele sabia desonrada: "era algo entre o parvo e o desperto, um complexo de simploriedade e esperteza, uma mistura de rapidez e embotamento...". É no meio desses homens que teria se originado a Máfia, no entender de Leonardo Sciascia, falecido recentemente, que estudou o fenômeno em seus romances mais conhecidos ("O Dia da Coruja", "A Cada Um o Seu", "Todo Modo").
Mesmo sentimentos tão tradicionalmente sicilianos como a honra, a inveja, a vingança, na realidade vividos como reflexos formais de sentimentos, como uma espécie de "preocupação jurídica" onde o mérito se afunila e desaparece na forma, são, na verdade, raízes de efeitos opostos, de neutralizações progressivas.
A inveja, por exemplo, tende a originar um tipo de amizade deletéria que se transforma em clientelismo ou, na política, em caciquismo eleitoreiro. Aí está, para ilustrá-lo, "I Viceré" (Os Vice-Reis), admirável quadro do velho mundo aristocrático siciliano de Federico De Roberto (1861-1927), onde o protagonista principal é inspirado numa personagem da vida real, a do marquês Antonio Patern•-Castello di San Giuliano, político que se destacou nos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial.
O caciquismo siciliano nasceu em função do interesse privado, daquilo que Verga chama a "roba", os bens não propriamente para serem usados, mas para serem deixados. À medida que a riqueza aumenta, aumenta aquilo que vai ser deixado, e o ritmo da acumulação é o ritmo da chegada da morte. É o caso do "Mestre dom Gesualdo", de Verga, que, no dizer de um ilustre apreciador da literatura siciliana, o romancista inglês D.H. Lawrence, "nada mais obtém da riqueza a não ser um grande tumor de sofrimento, um tumor amargo, que o mata".
A apreensão que acompanha esse ritmo de acumulação da "roba" é um dos traços mais condicionantes da vida siciliana. É uma sensação de insegurança na vida, nos afetos, nos bens, que se torna obsessiva e que Vitaliano Brancati (1907-1954) analisou de forma magistral em "O Belo Antonio" e no inacabado "Paolo, il Caldo".
Em ambos os romances, a mulher, mero acontecimento erótico, arrasta os protagonistas a outra espécie de contemplação da morte. A sensualidade mais concreta, que tanto está na última parte de "Paolo, il Caldo" quanto no penúltimo capítulo de "O Leopardo", se afunila em símbolos e presságios da morte, síntese extrema do modo de ser que é a Sicília.

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