São Paulo, segunda-feira, 23 de janeiro de 1995
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A Bahia dos timbaleiros

FERNANDO DA CONCEIÇÃO

Em recente declaração a um jornal paulista, Carlinhos Brown dizia: "Cada timbaleiro ganha ajuda de custo e ocupação valorizada até no exterior. Prefere tocar tambor a ser porteiro de prédio".
Não é à toa que dos artistas bem-sucedidos na Bahia, de recente safra, não se vê crítica perante o estado de coisas vivido pela maioria da população. Desemprego, miséria, polícia das mais violentas. Os anos de chumbo e circo da administração de ACM são louvados por Jorge Amado e seu séquito, intelectuais que cumprem o papel ideológico de mascarar o real.
Arnaldo Jabor, escrevendo sobre a situação do Rio de Janeiro, propunha que o Brasil da elite branca buscasse se reconciliar com o país dos "pardos e pobres" para não se transformar num gigante morro carioca. E citava a Bahia como modelo a ser seguido no processo de acomodação da violência (Folha 22/11/94). A Bahia é um estado de elites racistas.
Grupos como a Timbalada, Olodum, Ara Ketu, Filhos de Gandhy e outros são, na atualidade, reforço à alienação. Não é coicidência o fato de a popularidade de ACM ter aumentado na exata medida em que soube transformar toda a cidade de Salvador numa imensa festa diária, estimulando grupos de timbaleiros em cada esquina, apoiando fábricas de Carnaval e abrindo escolinhas que ensinam crianças a não entender a essência das coisas mas... a tocar tambor.
Salvador transformou-se na capital da "axé-music". Como 80% da população economicamente ativa não encontra emprego (nos últimos quatro anos o PIB baiano diminuiu), todos tentam a vida como timbaleiros, cantores, modelos etc.
A maioria é semi-analfabeta. ACM extinguiu todos os convênios firmados por Waldir Pires com organizações comunitárias como a Escola do Calabar. Jamais, depois do regime militar, se observou tamanho declínio das organizações populares não-adesistas.
Em contrapartida, o Pelourinho virou "cartão postal" na música do osmotico Olodum miscigenado. Ao aumento das crianças de rua, correspondeu o êxito do Projeto Axé, um empreendimento que se desenvolve em reforço ao status quo defendido pelas elites conservadoramente imutáveis.
Os reprodutores desse ideal timbalístico encarnam o que há de mais retrógrado no conflito social brasileiro. Eles difundem a idéia de que tocar tambor, ganhando uma "ajuda de custo", é um ideal plenamente satisfatório para os negros. Evitam partir para o confronto e o questionamento das condições que nos levam estar completamente alijados do poder em um Estado majoritariamente negro-mestiço como a Bahia.

FERNANDO CONCEIÇÃO, jornalista, é coordenador executivo do Núcleo de Consciência Negra na USP, autor de "Negritude Favelada" e "Cala Boca Calabar".

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