São Paulo, segunda-feira, 23 de janeiro de 1995
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A nau dos insensatos

PAULO PEREIRA DA SILVA

Neste momento em que um enorme contingente de pessoas, em todo o país, vive um momento de euforia com o novo governo e a inflação aparentemente está sob controle com o bom andamento (pelo menos até agora) do Plano Real, causa desânimo o comportamento indecente da maior parte dos políticos, que se autoconcederam um aumento salarial e de benefícios que pode até ser legal, mas é imoral e compromete a própria segurança do Estado.
Se alguém acha que estou exagerando, que atente para esses dados: como podem ganhar, somando vencimentos e benefícios, até 19 salários de R$ 8.000,00 mensais por ano, cada deputado poderá receber até R$ 152.000,00 por ano, ou R$ 12.666,66 por mês, 181 salários mínimos. Um trabalhador brasileiro na faixa do mínimo (e tantos existem que nem isso ganham...) teria de trabalhar 167 anos para ganhar isso.
Considerando-se que o ano do deputado é menor do que o ano de um trabalhador, a conta fica mais assustadora. Sua excelência, o nobre deputado, trabalha apenas de terça a quinta-feira, ou seja, 12 dias por mês, tendo direito ainda a um recesso de dois meses. O ilustre vagabundo, com as poucas exceções de praxe, serve ao povo apenas em 120 dos 360 dias do ano.
Imaginemos agora o desalento de um cidadão comum diante de tal disparate. Se o salário mínimo, de R$ 70,00, não será sequer aumentado para R$ 100,00 (o presidente deve vetar o reajuste), sua reação só poderá ser de mais revolta e descrédito em relação ao Congresso. Foi dessa revolta que Hitler, para citar o exemplo mais dramático, se aproveitou para assaltar o Estado e fazer o que fez. Só um Parlamento digno e forte pode impedir a eventual ação desse tipo pernicioso de aventureiros.
É por isso –e só por isso!– que o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo ingressou na Justiça com uma ação popular contra a decisão das nobres excelências. Na legislatura anterior, a Força Sindical, por iniciativa de nosso presidente Luiz Antônio de Medeiros, entrou com ação igual, contra aumento nos mesmos moldes. Que a ação, pelo menos, sirva de exemplo de nossa indignação e de nosso desconforto com este comportamento vil de muitos políticos.
Sabemos –não somos hipócritas- que tanto os políticos quanto os servidores públicos, do mais humilde ao mais alto executivo, precisam ser muito bem pagos, pra que não sucumbam às propostas de corrupção, de um lado, ou ao desânimo diante de falta de perspectivas profissionais, de outro. Ora, se o Parlamento brasileiro não fosse um navio à deriva, controlado por marinheiros insensatos, desonestos e preguiçosos, teria, antes de votar seu aumento salarial, de primeiro reformar-se, moralizando os costumes da Casa.
Para ganhar o salário justo, o profissional precisa primeiro merecê-lo. Não somos contra, insisto, o salário competitivo frente à iniciativa privada para os altos executivos da nação, assim como para deputados e senadores. O que se discute é o momento próprio para se fazer tal justiça.
Sabemos todos, e de repeti-lo já estamos roucos, que o Estado brasileiro precisa ser reformado para funcionar direito. Reformar o Estado significa reformar o sistema tributário, com o estabelecimento de um novo pacto federativo, modernizar a Previdência, acelerar a Justiça e acabar com os monopólios, restabelecendo a livre concorrência, e também reformar as instituições de representação da sociedade civil e suas normas de funcionamento: sistema eleitoral, Parlamento, partidos políticos, associações, até mesmo –por que não?– os sindicatos.
O Estado brasileiro faliu e algumas instituições apodreceram, enquanto outras estão emperradas ou impossibilitadas de funcionar. A Força Sindical, à qual o sindicato que presido está filiada, dedicou-se durante mais de dois anos a elaborar um projeto de um novo modelo de desenvolvimento econômico, político e social para nosso país. Temos uma proposta que coincide bastante com as que o candidato Fernando Henrique defendeu na campanha que o elegeu.
Ninguém dotado de bom senso pode discordar das linhas gerais desses dois projetos, aos quais se somam ainda outros, talvez não tão elaborados, mas igualmente preocupados com a busca de caminhos, sempre a partir de um mesmo diagnóstico. Ora, se há consenso sobre o diagnóstico e tantos pontos comuns quanto ao remédio para curar a doença desse Estado moribundo, por que, raios, não partimos logo para as cirurgias necessárias?
O fracasso da revisão constitucional, no ano passado, e os primeiros embates do governo com o Congresso, neste ano, mostram que não será tão fácil assim fazer as reformas, e que um dos principais focos de problema será este triste Congresso Nacional. Como já sabemos que o novo Congresso não será mais nobre do que este, cujo mandato termina, temos motivos de sobra para estarmos preocupados.
Se o novo governo não sair de sua torre de marfim, em cujo topo se inebria ainda com os louros da vitória, e não negociar democraticamente com a parte não corporativista, sadia e patriota da sociedade civil, poderemos chegar ao fim dessa história absolutamente decepcionados.
E a conclusão, dramática, a que se pode chegar neste momento é uma só. Segue a nau dos insensatos à deriva, cheia de tontos e ratos. Desse jeito não chegará a nenhum porto seguro. Daqui, da terra pouco firme de onde contemplamos o deslizar suicida desta nave, não podemos nos limitar ao papel de simples observadores. Ou corrigimos a rota logo ou poderemos ser surpreendidos, que Deus se apiede de nós, por uma grande tempestade popular.

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