São Paulo, sábado, 28 de janeiro de 1995
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Perfume de Gardênia

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Era alto, corpulento, olhos claros, cabelos quase louros, filho de português com uma inglesa que ficara louca não exatamente por causa do português, mas por causa da vida em geral. O filho conservou o sotaque dos anos passados na Inglaterra. Ninguém sabia seu nome. Para todos os efeitos, práticos ou teóricos, era o Perfume de Gardênia.
As razões do apelido tinham explicação. Perfume de Gardênia era um bolero que fazia furor na gravação estranhíssima de um cara chamado Bienvenido Grana ou coisa parecida –uma espécie de Leandro/Leonardo num só espécime e em escala latino-americana.
Perfume de Gardênia não cantava o bolero homônimo nem cantava coisa alguma. Em momentos de descontração assoviava canções que aprendera nos verdes campos da velha e querida Inglaterra. O apelido se justificava por outros motivos: ele nunca tomava banho e bebia muita cerveja. Suor e cerveja produziam nele uma complicada mistura que resultava num cheiro específico, percebido à distância se vento estivesse contra.
Ninguém se metia com ele, da mesma forma que ele não se metia com ninguém. Era forte, um touro que tinha até a catinga dos touros, embora gardênia e touro não façam sentido, ao menos aparentemente.
Quebrara a cara dos que ousavam qualquer alusão à fobia que ele nutria pelo banho. Um idiota passou por ele e teve a infeliz idéia de cantarolar o bolero –foi parar no Miguel Couto, dentes quebrados, fraturas expostas, contusões generalizadas– segundo o laudo publicado na "Luta Democrática" do deputado Tenório Cavalcanti.
Há muito não o via, uns 20 anos talvez, desde que me mudara do Posto 2 onde Perfume de Gardênia fazia ponto, acho que era a única e bastante coisa que ele fazia na vida. Outro dia, parei no cruzamento da praia com a rua Duvivier e vi um velho.
Eu o reconheci. Quando o sinal abriu, pisei forte no acelerador e gritei: "Perfume de Gardênia!". Pelo retrovisor, vi o seu assombro. Depois do assombro, ficou parado na calçada, dando furiosas bananas em minha direção.

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