São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Desconcerto e perplexidade

Romance quebra tabu e trata do universo `gay'

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Um ato de dupla coragem marca a estréia literária do crítico teatral e jornalista Alberto Guzik. Em primeiro lugar, a simplicidade assumida, o consciente despojamento estilístico de seu texto, quando, de um crítico veterano como ele, esperaríamos algo mais rebuscado, mais ousado linguisticamente. Em segundo, a capacidade aguda de expor sem máscaras o universo gay paulistano -o que, se já ocorre de há muito na Europa e nos EUA, ainda é tabu literário por aqui.
Na primeira metade de "Risco de Vida", Guzik "apenas" introduz um romance, uma "história de amor" entre o crítico teatral Thomas Maicóvski e o coreógrafo e revisor Cláudio Marques no início dos anos 80 em São Paulo. Em tonalidade rósea, água-com-açúcar, sem pressa de chegar, descreve-se o dia-a-dia do casal com detalhes, certa mornidão até. E somos levados, aos poucos, a simpatizar com eles.
Thomas, judeu, perto dos 40 anos, um tanto rabugento e entediado, e Cláudio, "gói", cerca de 30 anos, usina de entusiasmo, conheceram-se numa sauna em 82, passaram a viver juntos, a viajar juntos, mantendo uma relação estável, embora "liberal". (Atenção: não se esperem exuberâncias eróticas caricaturais ou lances de fantasiosa perversão; a intenção de Guzik não é catequizar ninguém e está longe de ser excitar o corpo do (a) leitor (a) ).
Ao longo de suas páginas, o autor encaixa dezenas de nomes reais de ruas, bares e restaurantes que os dois parceiros frequentam, cita pessoas reais com as quais se encontram, filmes e programas de televisão reais a que assistem, jornais reais que lêem.
Passam pelo livro, em carne e osso, Antonio Fagundes, Plínio Marcos, Marília Pêra, Sábato Magaldi; bares como Longchamp ou Redondo; restaurantes como Gigetto ou Speranza; assim ocorre com peças em cartaz, livros, boates, hotéis etc.
Lotando suas páginas de "points" e ícones que marcaram o começo daquela década na cidade, Guzik reconstitui com maestria e explícito conhecimento de causa os bastidores, a atmosfera do círculo de pessoas que então viviam em torno do teatro, da dança ou do jornalismo cultural paulistano -seja na universidade, seja nos palcos.
Tudo isso confere à obra, também, fortes traços de "roman à clef", e certamente leitores integrantes dessas "tribos" poderão se reconhecer em alguns personagens "fictícios".
Naqueles anos, como mostra "Risco de Vida", a Aids ainda era algo distante no Brasil, inclusive no "gueto" homossexual. A troca de parceiros, mesmo mantida a estabilidade do casal, aparece como praxe. "Era normal... Todos achavam normal. Não tinha nada de mais", diz Thomas a uma amiga. O livro só fala em camisinha lá pelo final de suas quase 500 páginas.
Aos poucos, porém, a década avançando, pipocam casos de vítimas da síndrome próximas a Thomas. Desconcerto, perplexidade, pânico total. É aí, quando já estamos perto da página 300, que o livro começa a ganhar mais tensão e dramaticidade. Pega fogo, como se diz. Guzik troca a lenta descrição de um cotidiano banal por uma viveza de espírito positivamente incômoda e conflituosa.
O mundo despenca sobre as cabeças de Thomas e de Cláudio, mas também sobre a cabeça do leitor. Ficamos comovidos diante dos dramas que surgem e de sua minuciosa descrição. Aos poucos, sentimo-nos envolvidos pelo furacão. Sem ser piegas nem apelativo, o narrador desperta algo de bom em nossas consciências e, numa catarse aristotélica cuja materialização não terá escapado ao crítico Guzik, faz-nos de repente solidários. Sentimos vontade de entrar no livro para "dar uma força" a Thomas e a Cláudio. Eis o mais destacado mérito do autor.
Além desse aspecto, digamos, objetivo, há na obra várias pinceladas de questionamento existencial típicas de uma geração frustrada. Durante uma viagem de veraneio com Cláudio, por exemplo, Thomas relê o último volume de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust. Feito uma criança que torce para o pirulito não acabar, mas que mesmo assim não pára de chupá-lo, ele luta para não chegar ao fim do livro, pois isso significaria uma perda irremediável. Guzik fornece, aí, uma bela demonstração de amor pela "Recherche".
A presença de Proust, note-se, não é casual. Espécie de paródia não-satírica, mas sem a pretensão de atingir a envergadura da obra proustiana, o romance de Guzik é também uma busca: pré ou pós-Aids, Thomas vive se questionando sobre sua capacidade de concluir o romance que escreve há anos e tenta permanentemente, em vão, decifrar as razões de sua infelicidade endêmica, a "velha angústia" que o assola. Mais uma vez presente, a eterna culpa judaico-cristã.
Duas observações de ordem técnica, estrutural, merecem ser feitas. O livro é escrito pelo próprio Thomas (sabemos disso porque ele faz uma introdução e um epílogo), que conduz um narrador principal em terceira pessoa e intercala trechos em primeira pessoa dele mesmo (Thomas). Ocorre que, à medida que avançamos na leitura, o personagem-narrador se confunde -em idéias e estilo- com o personagem propriamente dito, originando-se daí um ruído cujo efeito não é positivo à leitura.
É como se inicialmente Thomas tivesse escrito tudo em primeira pessoa, decidindo depois trocar a maior parte pela terceira, mas mudando, para isso, apenas a pessoa verbal, deixando sobreviver, na "boca" do narrador então introduzido, as idiossincrasias, os vícios, o pensamento do seu personagem.
Não por acaso, só se revela ao leitor, por exemplo, o que passa na cabeça do crítico, não nas dos demais integrantes de seu círculo. Com essa unilateralidade, o narrador atrai demais a atenção sobre si mesmo e, paradoxalmente, debilita Thomas enquanto personagem, embora este continue sendo o protagonista maior do romance. Nesse aspecto, Guzik não conseguiu fazer do Thomas-narrador um romancista acabado.
Há, é preciso dizer, uma coloquialidade mais acentuada nos trechos em primeira pessoa, mas isso resolve apenas superficialmente a questão.
Impossível não ressaltar também que o livro ganharia em consistência dramática, seria mais envolvente desde o começo se passasse por um trabalho de enxugamento, em especial na primeira metade. Isso provavelmente não se faria necessário fosse outro o estilo, fosse o artesanato do texto uma atração lúdica em si mesmo, como no próprio Proust. Não sendo o caso -pois Guzik visivelmente optou por uma radical simplicidade-, o fato é que, com o excesso de eventos de segunda grandeza, o autor corre o risco de cansar antes do tempo quem o lê, o que para qualquer livro é sempre um "risco de vida".
Que fique claro, porém: tal como para o narrador do romance, também para o leitor terá valido a pena arriscar-se, ir até o fim.

A OBRA
Risco de Vida, de Alberto Guzik. Capa de Moema Cavalcanti. 496 págs. Editora Globo (r. Domingos Sérgio dos Anjos, 277, Pirituba, São Paulo, CEP 05136-170, tel. 011/836-5000). R$ 28,00

LANÇAMENTO
O autor autografa a obra na quarta-feira, dia 4 de outubro, às 20h, no Diva Donna (al. Tietê, 580, São Paulo, tels. 011/852-0518 e 881-1273).

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