São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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eis o homem

CAIO TÚLIO COSTA

Acredito que obras de ficção, quando usam referências históricas, têm a obrigação de fazê-lo com honestidade
A convite da Prefeitura, o italiano Franco Zeffirelli, diretor de cinema, passou dez dias no Rio de Janeiro, mês passado, para projetar um megashow de Reveillon na praia de Copacabana.
Tenho dúvidas se Zeffirelli seria realmente o homem certo para comandar shows em qualquer lugar.
Seus filmes me levam sistematicamente ao sono. Ele consegue ter a qualidade de banalizar tudo o que sua mão toca. Não se pode negar, no entanto, que exista quem glorifique seu estilinho margarina light de fazer espetáculos, cinema incluso.
Vamos ao que importa. Contra Zeffirelli, pesa algo grave: ele desrespeitou o Brasil, a história do Brasil.
O caso aconteceu há sete anos e o desrespeito está no filme "Jovem Toscanini", sobre a passagem do compositor e maestro italiano por aqui, jovenzinho, em 1885. Veio numa turnê, como violoncelista, e acabou regente da orquestra que acompanhou a cantora lírica Nadina Bulicioff. Ela vivia no Rio, frequentava a corte e, segundo o filme, era amante de D. Pedro 2.o .
O script foi objeto de processo contra Zeffirelli, por parte do escritor Guilherme Figueiredo, irmão do ex-presidente João Baptista Figueiredo. Guilherme tinha feito o roteiro, mas caiu fora da produção quando percebeu adulterações na história.
Pois é. Quem desconhecer a história do Brasil e assistir ao filme terá as seguintes imagens do país:
1. A abolição dos escravos teria ocorrido de maneira abrupta -e não gradualmente como ocorreu de verdade. Vide as várias leis, como a do Ventre Livre, anteriores à abolição assinada pela princesa Isabel.
2. Na apresentação da orquestra, regida por Toscanini, a cantora russa Nadina Bulicioff interrompe a sessão -o imperador Pedro 2.o presente- para fazer um discurso político e doar seu anel à causa abolicionista.
3. Toscanini, o incentivador, é o primeiro a aplaudi-la.
4. Nadina anuncia então a libertação de seus sete escravos e uma legenda toma conta da tela: "Três anos depois os escravos seriam libertados no Brasil".
Ao espectador resta a falsa impressão de que Nadina, insuflada pelo politiqueiro Toscanini pintado por Zeffirelli, precipitou a libertação.
Isto sem falar dos escravos conversando em espanhol e cantando samba (em 1885!), quando o primeiro samba, "Pelo Telefone", é da primeira década de 1900.
Detalhes?
Não sou xenófobo, não considero meu país acima de tudo, não detesto coisas estrangeiras e nem milito em lides nacionalistas. Somente acredito que obras de ficção, quando usam e recriam referências históricas, têm a obrigação de fazê-lo com honestidade.
Felizmente, o filme de Zeffirelli passou despercebido pelo mundo.
Eu estava no Festival de Veneza, em 1988, na primeira apresentação. Arrogante, quando o interpelei em entrevista coletiva sobre a falsificação operada, Zeffirelli devolveu dizendo que eu não conhecia história do Brasil. Um dia depois pediu desculpas, disse que era uma obra de ficção, não queria criar caso com os "amigos brasileiros" etc.
Não há perdão. Sua atenção para os problemas foi chamada antes que o filme entrasse em exibição. Se não podia suspender sua distribuição, tinha como reformular, ao menos, o letreiro final.
Não o fez. Não merece o nosso respeito.

Ilustração: "A Mulher de Cabelos Verdes", Anita Malfati, 1915/1916

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