São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 1995
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Sorry, periferia

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Permitam-me insistir um pouco no tema do provincianismo brasileiro. Fernando Pessoa definiu o fenômeno de maneira lapidar: "O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela -em segui-la, pois, mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. A síndrome provinciana compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia."
E acrescentou: "Para o provincianismo, só há uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando não o somos (...)."
Herdeiros do provincianismo português, somos portadores exultantes dos sintomas típicos identificados por Pessoa. No campo da economia e da política, os exemplos abundam.
Vou contar um pequeno episódio. Em outubro de 94, fui convidado por um jornal brasileiro para participar, como expositor, de um seminário internacional sobre economia brasileira, em Londres, para um público de investidores estrangeiros. Pediram-me, naturalmente, que falasse em inglês.
A mesa era integrada por várias autoridades governamentais, inclusive um dos diretores do BC (Banco Central), que foi o primeiro a se servir da palavra. Num inglês algo macarrônico, exaltou as virtudes do Plano Real e frisou a determinação do governo de adotar uma política favorável ao capital estrangeiro.
Mas o engraçado veio em seguida. O orador seguinte, presidente de um banco estatal, desculpou-se, um pouco constrangido, pela sua pouca fluência em inglês e passou ao português. Pois bem. Uma minoria ínfima dos espectadores teve que recorrer aos fones de ouvido.
Como pude confirmar depois, a grande maioria dos investidores presentes era composta de brasileiros, alguns residentes em Londres e muitos vindos do Brasil. Tratava-se de um falso evento internacional, como são, aliás, boa parte desses colóquios. Mas todos nós nos sentíamos importantíssimos, os participantes em geral e especialmente os expositores, convidados a Londres para falar em inglês para brasileiros sobre o Brasil! Só faltou os brasileiros conversarem entre si em inglês, durante a pausa para o cafezinho.
Aliás, o aspecto pseudo-internacional não é apenas típico de eventos organizados por brasileiros; o próprio investimento estrangeiro e a própria dívida externa são, em certo sentido, falsos fenômenos internacionais.
Por motivos diversos (fiscais, proteção contra confiscos etc.), o brasileiro rico deu para se fantasiar de estrangeiro nos últimos anos. Em consequência, parte apreciável da dívida externa do Brasil está, direta ou indiretamente, nas mãos de brasileiros, o que contribui, diga-se de passagem, para explicar o crescente apoio dentro do país, desde o final dos anos 80, à tese de que o pagamento da dívida externa é uma prioridade nacional...
Como bom provinciano, o brasileiro é uma vítima dos mais lamentáveis equívocos conceituais associados aos slogans e frases feitas que a "comunidade internacional" exporta para a periferia subdesenvolvida. O pior é que, geralmente, a versão que se consolida nas nossas cabeças é ainda mais simplória do que a mensagem original. Um exemplo é a tese de que a importação de capitais estrangeiros é fundamental para o desenvolvimento econômico; outro, a idéia de que a acumulação de déficits é algo necessariamente negativo.
Não é difícil perceber que as palavras de ordem da moda podem levar-nos a contradições quase cômicas. No já referido seminário em Londres, um investidor (brasileiro, é claro) tomou a palavra, durante os debates, para tentar conciliar o inconciliável. Por um lado, queria concordar com a prioridade que o diretor do BC atribuía à importação de capital; por outro, concordava comigo que déficits no balanço de pagamentos em conta corrente constituíam um dos problemas do Real. Queria estimular o ingresso de capitais, mas preservar o equilíbrio em conta corrente.
Ora, nesse caso, o dinheiro entraria por um lado (como superávit na conta de capital do balanço de pagamentos) e sairia por outro (na medida em que o BC fosse aplicando no mercado internacional os acréscimos em suas reservas cambiais). Não houve meio de fazê-lo aceitar que, do ponto de vista macroeconômico, não há como absorver capitais externos sem permitir que apareça um déficit no balanço de pagamentos em conta corrente.
Mas o importante é entender as condições que precisam ser respeitadas para que déficits em conta corrente não se tornem, como tantas vezes no passado, fonte de sérios problemas para a economia.
Deve-se assegurar, entre outras coisas, que o nível do déficit corrente permaneça sob controle, que o seu financiamento se faça em termos adequados, que o país não fique na dependência de capitais voláteis, que os recursos externos sejam destinados à formação de capital e não ao financiamento do consumo, que os investimentos sejam rentáveis etc.
Como se vê, a lista de exigências é bastante extensa. Tanto que raramente chega a ser de fato cumprida, o que acaba resultando em crises cambiais recorrentes, com consequências muitas vezes graves para o desenvolvimento da economia e a soberania nacional.
E, no entanto, chega cada geração de provincianos, descobre maravilhada o fascínio das finanças internacionais e, sem maiores cuidados, lança o país em mais um ciclo temerário de endividamento externo.

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